31.3.24

FIM DA INFÂNCIA

Quando a menina entrou, apenas a chama oscilante mal iluminando a cozinha, a sua mamãe tomava café com biscoitos, o rosto fixamente sobre a xícara de café preto, movimentos lentos, costas recurvadas, e o silêncio entre elas, como se lá não estivessem.

A menininha sentou-se e esperou que a mamãe falasse algo.  Esperou, mas não veio palavra alguma. Fazia frio, e ambas usavam um pequeno cobertor sobre os ombros. Lá fora, sem vento algum, nem o farfalhar das árvores, apesar da porta aberta para o lado de fora.

- Papai ainda não chegou, mamãe.

A mãe levantou a xícara e tomou mais um gole do café quente.

- Por que ele está demorando tanto, mamãe?

Sem levantar os olhos, a mamãe ergueu a xícara com a costumeira leveza nos gestos, as feições impassíveis e, em rapidez vertiginosa, a atirou contra a parede. E permaneceu ali sentada, ombros caídos, braços soltos, o corpo recurvado, como se nada houvesse feito de anormal.

- Mamãe?

Os cacos espelharam-se sobre o chão pouco iluminado. Nenhuma iniciativa de ir recolhê-los. Permaneceu como estava, como se ainda diante de si estivesse a xícara intacta e cheia de café puro e quente. A menina abaixou o olhar, levantou-se, e tocou os longos cabelos da mamãe, e o fez de cima para baixo, vezes seguidas, entrelaçando seus dedos pequenos entre os fios finos com infinita doçura. E continuou, enquanto lágrimas pequenas escorriam-lhe pelo rosto. A mãe não se mexia, apenas a respiração fazia balançar as chamas da vela ali longo em frente.

A criança percebera, apenas com um olhar, o mundo que se descortinava diante dela pela primeira vez, embora quase nada pudesse enxergar além da pequena chama pouco adiante.

- Mamãe - Falou bem baixinho a criança, quase inaudível, quando veio uma rajada de fora da cozinha, por aquela porta aberta, e a chama deu lugar à escuridão que as acolheu.

 


 

17.3.24

NOITE

 Estávamos todos na varanda. Lá fora, a escuridão abaixo das estrelas e que se estendia até nós. Dentro da casa, umas poucas lamparinas. Em volta delas, pequenas mariposas girando sem parar. Foi quando a menina gritou. Todos se levantaram, foi um grito agudo, alto, sentimos como um estremecimento. Lá fora, a noite densa pareceu avançar um pouco mais. A mamãe correu para a garotinha e tomou-a nos braços. Era abril, o calor erguia-se voltando ao espaço, como se um fluxo do chão para o profundo do desconhecido, e nem sinal de uma brisa, as árvores inertes e silenciosas. A menina apontou para dentro da sala. A mamãe tentava acalmá-la, balançando-a como se faz com crianças bem menores.

- São lamparinas e mariposas, querida. Veja como elas voam. Veja essa daqui, se afasta um pouco, e depois sempre retorna e choca-se com o vidro. Veja!

A menina tentou olhar para a mariposa por algum tempo e acompanhou o vôo em espiral. Mas logo desviou os olhos para mais lá dentro, para os cômodos além da sala, uma escuridão dentro da qual as lamparinas não alcançavam. E apontou mais uma vez. 

- Traga-a para cá. – O papai levantou e estendeu os braços. 

E ouvimos o segundo grito. Dessa vez, não agudo e nem curto. Foi como se não viesse daquela garotinha, como se de outro lugar ou de outra pessoa. A mamãe correu para fora com a filha agarrada fortemente aos braços, e chamou pelo esposo. Entre nós havia um médico, um parteiro, e logo foi socorrê-los, levando o dorso da mão ao pescoço da criança.

- Ela pode estar febril…

- Mas não está…

Aos poucos, num levantar-se, as visitas foram se despedindo do anfitrião. “Já é tarde; afinal, todos precisam descansar para amanhã”. Mas não era tarde, e haviam chegado há pouco. Mas foram-se todos.

O pai, segurando uma lanterna. A mãe, levando a filhinha, tampando-lhe os olhos. Levaram-na para o quarto. 

Nem mesmo os que se foram para longe dali conseguiram adormecer antes do nascer do sol. Foi a mais longa das noites. 

20.1.19

TWIN PEAKS REVISITADA



Passo a narrar fatos alarmantes, cujas origens antecedem os acontecimentos aqui relatados, e cujas implicações estão além deles.

(...)


O ventilador de teto da sala estava na velocidade mínima e fazia um ruído agradável aos ouvidos dela. Abaixo, sobre o tapete vermelho, Laura fazia as lições da escola totalmente recurvada sobre a mesa-de-centro; a TV ligada, um pouco mais à frente, quase inaudível.  Era assim que estudava, embora não parecesse nada confortável, pernas cruzadas, livros no chão e o caderno sobre a mesinha. Estava no último ano do ensino médio e o foco era uma vaga numa universidade. Pretendia ser arquiteta, gostava de artes e tinha habilidades para desenho. Havia por trás  o incentivo do pai, pois engenheiro. Era filha única e adorada. 

Mas ela tinha que encurvar muito a coluna para poder escrever sobre a mesinha, considerando a estatura. Uma moça alta e esguia. 16 anos apenas. Estava naquela fase em que a beleza feminina começa a ficar viçosa, com jeito de mulher nova se apresentando ao mundo.  Seus longos cabelos castanhos, pele branca e lisa, e um andar que chamava atenção ao passar na rua. 

Já passava das nove da noite, estava sozinha, os pais haviam saído para o jantar do mês do Lions Clube. Tudo trancado e muito seguro. Na TV, um filme qualquer, só pra constar. E de cima vinha a brisa leve do ventilador no mínimo. Laura consultou rapidamente o dicionário e o colocou de volta sobre o tapete, voltando ao exercício de redação. 

Foi quando ela notou que a brisa cessou de repente. Olhou pra cima e viu que as pás do ventilador haviam parado. 

Laura...

Ela ouviu aquela voz gutural.

Ao desviar a visão do ventilador parado, e buscar o lugar de onde vinha o chamado, ela deparou-se com um homem de rosto suado no outro extremo da sala. Seus cabelos eram longos, uma mistura de pretos e  grisalhos, ensebados. 

Ele já se movimentava, e vinha bem devagarinho, andando em círculos em torno do tapete, e cada vez se aproximando mais e mais, a cada volta que dava. Seu movimento tinha um quê de coreografia, como se fosse um ritual para chegar até ela. Usava um blusão sintético preto e vulgar de motoqueiros de estrada. Estava com o zíper aberto até o meio e mostrava o peito nu, onde se via a tatuagem de um coração vermelho.

Ela não ousou perguntar como ele havia entrado ali. Não havia como ter entrado, não havia.  Estava tudo trancado, havia alarmes, câmeras, todas essas coisas de segurança.

E ele veio se aproximando lentamente, não andava ereto, mas com os joelhos um pouco dobrados, meio agachado, andava desse jeito, mas não balançava o corpo. Os braços permaneciam abertos pra frente, como para pegá-la. A boca sempre aberta. Muito aberta, ao máximo. Mas não ria. Nada daquilo poderia lembrar sorriso ou mesmo um riso de maldade. Era a pior imagem que se  poderia ter de uma boca muito aberta vindo em sua direção.

E quando o homem chegou mais perto, ela viu melh or e nitidamente o quanto era vermelha a tatuagem em seu peito, quase cor de sangue. Um coração do tamanho de um punho tatuado no peito.

Foi quando ela percebeu.

De pronto, percebeu o cheiro dele. Aquele cheiro era conhecido. Cheiro de perfume misturado ao suor. O perfume lembrava muito o de uso do pai. 

Neste ponto, o homem já estava muito perto e poderia tocá-la, se quisesse. 

NÃO! PELO AMOR DE DEUS, NÃO! MEUS JESUS, NÃO!

Ela gritou. Fez um enorme esforço. Mas os gritos não saiam. E a visão foi turvando. Aquela bocarra aberta foi esmaecendo e se misturando a uma névoa envolvendo a sala inteira, até ela não poder mais enxergar nada.

O homem arrancou uma página do caderno, pegou uma caneta e começou a escrever. Escrevia bem devagar, tão devagar que parecia estar desenhando em vez de escrevendo. Alguma coisa ele escrevia ali em total concentração e cuidado nos detalhes, a bocarra aberta, quase colada ao papel, a respiração sendo jogada contra a folha de caderno escolar. 

Quando Laura voltou a si - não havia mais nenhuma névoa, e a visão estava límpida e nítida -, deu-se conta da possibilidade de poder fugir e escapar, pois o homem estava a escrever num papel de caderno, e parecia não se importar com ela, era a impressão que dava. Ela poderia fugir, se quisesse.

De imediato, ela mirou o corredor que dava para os quartos e correu. Entrou no primeiro quarto, trancou a porta, abriu a janela e pulou. E correu o mais que pode. Mas não o suficiente, pois algo a puxou fortemente pelo pescoço, e seu corpo foi jogado com força extrema para trás. E, neste  exato momento, ela ouviu um medonho urro gutural daquilo que a impediu de seguir. Talvez, se já tivesse ido ao inferno, pudesse ouvir algo semelhante e pavoroso vindo das profundezas. Mas, do fundo do seu cérebro, das memórias de pesadelos de desde a infância,  agora retornados como um flash sonoro para a superfície consciente, ela soube já ter ouvido aquela monstruosidade.  

* * *

Os alarmes dispararam em seguida. Vieram todos, os pais foram chamados lá do Lions Clube,  seguidos dos membros mais próximos da família. Acumulou-se uma enorme aglomeração de vizinhos. Sem demora, os policiais. Aos poucos, foram também chegando corujas a se alojarem nas árvores próximas. 

Os policiais encontraram  a janela de um quarto e a porta da sala abertas. Na sala, os móveis e objetos pareciam no lugar e arrumados. No centro da sala, livros espalhados num enorme tapete vermelho. O ventilador de teto estava ligado, as pás girando lentamente na velocidade mínima, a TV ligada no volume baixo. Laura não estava lá. Os pais caíram em desespero, a mãe saiu andando como uma louca em volta da casa a gritar o nome da filha.

Fizeram buscas na vizinhança. A polícia levou o smartphone da garota, cadernos, livros; deram uma busca completa nas gavetas, armários, coletaram provas. E olharam o principal, as imagens das câmeras de segurança. No entanto, não encontraram sequer um único registro gravado sobre aquela noite no sistema. Apenas ruído e estatística. 

De pronto, o delegado descobriu, no aplicativo de mensagens do celular de Laura, trocas de recados entre ela e um traficantezinho da cidade. Não eram somente mensagens de pedido e fornecimento de drogas, mas também declarações de amor, fotos, marcação de encontros secretos, juras, promessas. 

Pegaram o rapaz ainda naquela noite. Era um vagabundo qualquer de boné de aba reta e correntão no pescoço. Segundo um jornal no dia seguinte, "um pobre coitado da periferia". Mas já era maior de idade, 20 anos. Não tinha álibi, e nem quis falar nada. Apareceu um advogado de terno gasto. Não havia provas de que tivesse feito algo à garota. Afinal, fora encontrado em casa, umas três horas após o início das buscas, onde morava só. Mas havia drogas por lá, não muito, mas o suficiente para incriminá-lo como traficante. A PM o conhecia bem. No celular dele, troca de mensagens com Laura, vídeos íntimos de sexo, bebedeira, bacanal, e mais uma terceira pessoa.  Ménage à trois. E muita droga. 

Foram atras do terceiro no dia seguinte. Era um bem-de-vida, empresário, um tipo playboy bissexual, casado. Gente bem posicionada. Aquele mesmo jornal insinuou que pudesse ser ele o autor de não se sabia exatamente o quê, Mas, apesar da imprensa, a coisa ficou um pouco mais difícil entre a polícia e o terceiro. Apareceram advogados de todos os lados, bons ternos, gente importante e influente. E dinheiro. Bem como ninguém quis arriscar fazer acusações sem provas, mesmo porque a moça em causa estava apenas sumida. Agora, já se sabia, uma doidinha sumida.

- Essa dona é maluca.  - disse o terceiro - Vocês não perceberam ainda? É muito estranho a família não saber nada da má fama dela. Vocês não viram os vídeos? - Enquanto, do outro lado da mesa, o delegado tomava um xícara de café preto para tentar controlar o sono de uma noite perdida. 

A polícia tinha, diante de si, apesar da gritaria dos pais, apenas uma menor consumidora de drogas fugida de casa. Bem provavelmente, logo pela manhã de mais um dia, quem sabe, seria encontrada com alguém por aí. Ou voltando meio bêbada. 

Não demorou muito para saberem a resposta.

Dois dias depois, no raiar do sol, um velho agricultor, dono de uma propriedade próxima à cidade, encontrou um corpo enrolado em plástico transparente jogado na beirada de uma lagoa. Ao chegarem ao local, depararam-se, sob voltas e  voltas de plástico, com o corpo nu de Laura.

Estava repleto de hematomas, cortes e deformações provocadas aparentemente por mero uso de força física. Braços, pernas, ossos, dentes quebrados. Quando o pai a identificou, urrou como um louco. Foram obrigados a sedá-lo. O delegado admitiu nunca ter visto algo daquela natureza, apesar de sua passagem profissional por capital violenta.

Levaram o corpo para o IML. Nada daquilo que se vê em séries policiais de TV, nada de sinais e pistas deixadas por serial killers cerebrais fazendo desafios e corridas de gato-e-rato com investigadores obcecados. Apenas a violência exposta e brutal, feroz e bestial. Com uma única exceção, talvez. 

Na cavidade bucal, uma folha de caderno escolar cuidadosamente dobrada. Nela podia-se ler, numa caligrafia entre rústica, infantil e quase desenhada, uma mensagem escrita em caneta azul:

EU SEMPRE ESTIVE COM ELA. 
ASSINADO: BOB.


Marco Antonio

OS CARAS DA MESA AO LADO

“Fora da ciência, o progresso não passa de um mito.”
John Gray - Cachorros de Palha. 


Eu os vi naquele restaurante, estavam numa mesa bem próxima à nossa, em número de quatro. Lembro bem deles. Cheguei a comentar com o meu amigo:

- Aqueles caras ali naquela mesa. Olhe pra eles…

O meu amigo disse não ter notado nada de anormal, nem nas roupas, na aparência ou nos gestos, e achou engraçada a minha desconfiança, seja lá qual fosse.

- Eles estão bebendo cerveja da mesma marca da nossa. - ele brincou e encheu meu copo.

Eu e meu amigo estávamos ali para trocarmos ideias sobre a compra de um imóvel. Ele entendia do ramo. Na verdade, o seu trabalho. Eu o convidara para uma consulta informal.

- Compre agora! - deu aquele tipo de opinião de profissional - Os preços vão subir. Vão subir muito, pode acreditar em mim. O mercado imobiliário está aquecido.  A economia está de vento em popa, as expectativas são de manutenção do crescimento e de uma demanda crescente. Quem tem dinheiro está comprando tudo. Se esperar, meu amigo, pode perder uma ótima oportunidade ou vir a comprar bem mais caro daqui a um mês.

Ele era bom naquilo, inteligente, bem informado, sempre certeiro. E eu me decidi de imediato. Além disso, éramos amigos, bons amigos, velhos conhecidos. 

- Fechado! O negócio será fechado logo pela manhã - Prometi.

Terminamos o jantar na certeza de ter decidido fazer a coisa certa. Na saída, passamos pela mesa dos quatro, e nenhum deles deu pela nossa presença. O que parecia ser o mais velho falava pausadamente, enquanto os demais ouviam com atenção.

No dia seguinte, um pouco antes da hora do almoço, quando cheguei em casa, depois de pegar um trânsito totalmente caótico, encontrei a minha mulher tentando, em vão, sintonizar algum canal de TV.

- Só chuvisco, você está vendo? Todos os canais estão assim - ela comentou com ar de interrogação, parada no meio da sala, mostrando o controle remoto pra mim.

- Pode ser o cabo folgado. Ou o transmissor queimou. Meu celular também não tem sinal.

- Fechou o negócio? - ela perguntou. Havia esperança em seu rosto. Mas também apreensão

- Não deu...

- Deus do Céu! - Ela desabou sobre sofá da sala, deixando cair o controle remoto no chão. - Perdemos a maior oportunidade de nossas vidas. Afinal, o que aconteceu com você? O que deu em você? O que deu em você? - Ela repetia gritando sem parar - O que deu em você?

Três dias depois, nenhum de nós sabia ainda o que estava acontecendo, nem quanto tempo duraria. No início da noite, carros da polícia fecharam as avenidas principais da cidade. As emissoras de rádio, a única forma de saber o que acontecia lá fora, nada diziam além dos pronunciamentos oficiais. Estávamos no escuro, como se diz, sem telefone, sem celular, sem internet. Uma nota oficial anunciou o fechamento das escolas, repartições públicas, dos estabelecimentos comerciais e parques. Emitiram uma ordem para que ninguém saísse de casa, exceção para casos de emergência médica. Apenas os hospitais ficariam abertos, sob forte proteção da polícia e do Exército. Sem explicação alguma, apenas ordens.

Os dias seguintes foram como um rolo compressor. Falta de energia e de água; saques, pessoas correndo pelas ruas com pacotes de comida e enlatados, dava para ver da janela de nosso apartamento. Caos e violência. Passamos a sentir muito medo. Minha mulher provavelmente já havia esquecido o fato de eu não ter feito o negócio de nossas vidas.

No entanto, apesar do caos social e humano que avistávamos da janela, além das ordens oficiais pelo rádio com proibições de toda natureza, não ouvimos um único sinal de explosão ou ataque militar. Raros eram tiros aqui e ali.

Para a nossa sorte, por um tempo, teríamos um bom estoque de comida e enlatados, e só havia nós dois em casa. Mas tínhamos receio de que os vizinhos viessem. Não ousávamos sair ou abrir as portas do apartamento, nem as janelas, apesar do calor sufocante. Não foi fácil permanecer ali daquele jeito. Mas qual seria a alternativa?

A minha mulher deixou de lado aquele seu nervosismo inicial, talvez por ter percebido, antes de mim, o poço onde estávamos mergulhando, embora não soubesse de nada sobre o que havia causado tudo aquilo. Mantinha, para a minha perplexidade, uma serenidade nos gestos e nas palavras. Preparava a comida, respeitava metodicamente os horários das três refeiçoes, arrumava a mesa e a nossa cama, colocava os objetos de volta no lugar. Vê-la varrendo a sala dava um pouco de esperança. O mundo lá fora desmoronando, e ela varrendo o quarto, colocando com cuidado as roupas na gaveta certa. As últimas imagens daquele mundo ao qual estávamos acostumados desde criança, e que ainda tento carregar, são da minha mulher tentando manter as coisas em ordem.

Depois de alguns dias, não  teve mais jeito. Saímos à procura de água e comida. Fazer isso e fugir do inferno da cidade. Nessa fuga da metrópole, grupos perseguiam grupos, um mundo de pessoas fugindo e com medo de tudo, e ninguém sabia dizer a razão de termos chegado naquele ponto. Simplesmente não houvíamos respostas concretas, com a exceção de teorias malucas.

Para nossa infelicidade, nos perdemos um do outro. Nem mais uma vez a vi, e nem lembro de como ela se afastou e sumiu. Qualquer traço de esperança se esvaiu. Não era mais o mesmo mundo.

Agora, anos depois,  nos organizamos em tribos. Tribos rivais e sistematicamente agressivas umas com as outras, exceção para alguma aliança temporária contra outro agrupamento. Mas dizem que já temos alguma normalidade, se é que isso pode ser chamado de normalidade. Em verdade, um caos violento ao qual nos acostumamos com o tempo. A parte população que sobreviveu à fome e às doenças dividiu-se em espécies de tribos com nomes estranhos e lideradas com mão de ferro. Havia também os desgarrados, gente que não aceitou ficar sob comando de um pequeno tirano qualquer e saiu a aventurar-se por ai, enfrentando um dia incerto após o outro.

Passei a vida ouvindo falar da capacidade humana de adaptação. Sim, nos adaptamos. O tempo foi passando, fui deixando pra lá. De vez em quando, raramente, tenho um sonho bom, as cidades erguidas, carros, semáforos, pessoas atravessando ordenadamente pela faixa de pedestres; telefones, internet, condicionadores de ar; remédios contra dor, água limpa; lanchonetes, comida farta à venda em supermercados; supermercados gigantescos e suas prateleiras abarrotadas com uma variedade infindável de opções. Sonho ainda com a casa arrumada, a mesa posta, minha mulher fazendo todas aquelas coisas em seus mínimos detalhes, as roupas na gaveta certa, talheres, xícaras, a TV ligada, o sofá da sala, as pequenas coisas da ordem e da rotina doméstica. 

Recentemente, por uma sorte de uma em um bilhão, reencontrei aquele meu amigo do mercado imobiliário. Coitado, um trapo humano, quase irreconhecível. Eu também - ele disse - quase irreconhecível. Perdemos também aquelas maneiras gentis de esconder a verdade sobre a aparência envelhecida, desgastada ou doentia de um amigo após muitos anos distantes um do outro. Aliás, foi muito rápido como todas as formas de convivência civilizada se deterioraram. Afinal, não faz tanto tempo assim.

- Você lembra da última vez em que conversamos? Foi naquele restaurante perto de um shopping enorme. Era muito bom aquele lugar, não era? Aliás, tudo parecia ser muito bom... - Eu disse.

- Sim, lembro. A parte do bar era muito bonita, sempre iluminada com cores vivas por trás das garrafas nas prateleiras.

- Era um lugar muito bom!

- Lembro também de você ter apontado para os caras estranhos. Você lembra disso?

- Sua memória ainda está boa, meu amigo, apesar de tudo, apesar de seus cabelos já quase nem existirem mais.

- Mas eu não percebi nada neles. Eu juro! Juro que não percebi…

- Eu sei disso. Mas talvez tenha sido apenas um engano meu. Só um engano, talvez… e não poderíamos ter feito nada... então... - eu sorri.

-  Não, não poderíamos.

Foi uma conversa rápida, o grupo dele se aproximou e logo nos afastamos. Não perguntou sobre a minha mulher, nem eu pela família dele. Neste ponto, fomos muito gentis um com o outro. E não nos vimos nunca mais.

Marco Antonio.

ESTÁ NA HORA DE FECHAR



O mundo parecia rodar ao meu redor quando levantei naquela manhã fria de agosto. Eu havia bebido muito na noite anterior e ainda havia cheiro de cerveja na roupa e em toda a casa, e a visão era de garrafas espalhadas pelo chão da sala e por cima dos móveis. Lá fora, caia uma chuva fina e constante, nem ruído fazia, de tão fina que era. Olhei pela janela, abrindo um pouquinho a cortina. A luz doía nos olhos, fazendo a náusea vir de lá do fundo do estômago.

Deu apenas pra saber, de relance, que a rua estava vazia, apenas água fina escorrendo pela calçada. Então eu fui até o banheiro e tomei um longo banho. A água pesada e forte sobre as costas; os olhos fechados, um zumbido fino na cabeça, a náusea, e o ruído do impacto da água no piso escorrendo pelo ralo. Já menos sonolento, fiz um café, Deus sabe como, e dormi o resto do dia.

Quando já  noite, ainda a mesma chuva fina caindo lá fora, troquei de roupa e fui até a uma lanchonete próxima. Pedi um daqueles sanduíches imensos e gordurosos. Sentei-me numa mesa bem afastada, embora o lugar estivesse vazio. Ao fim -  parecia estar novamente vivo -, o dono do estabelecimento perguntou o que eu ainda estava fazendo ali, e foi logo dando ordens de ir embora.

- Está na hora de fechar!

Ao voltar, o mais depressa que pude, não vi uma única alma pela frente, embora não fosse tão tarde assim. A rua estava deserta, as demais casas com as portas e janelas fechadas contra o frio e a umidade. Entrei, liguei a TV, estava passando notícias, e fiquei ouvindo a apresentadora, enquanto limpava a sala de todas aquelas garrafas da noite anterior. Havia muitas garrafas e latas de cerveja, mas também algumas poucas de vinho, uísque, vodca, até de rum havia também.

Passava no canal uma longa reportagem sobre a mais recente crise. Deitei-me no sofá e  tentei prestar atenção ao conjunto confuso de informações e declarações de autoridades do sistema financeiro, um desfile interminável de empresários, ministros, governadores, líderes políticos, economistas, consultores e palpiteiros falando pelos quatro cantos do mundo. Estranhou-me entrevistarem também autoridades militares e religiosas. Aquilo havia explodido, ao que parece, num único dia, talvez só a partir do turno da tarde, enquanto eu dormia, naquele dia em que eu havia dormido tanto. E, dada a surpresa geral, sem maiores avisos. Mas lá fora parecia ir tudo bem. Pelo menos, entre a minha casa e a lanchonete, eu não vi nada de estranho, pessoas correndo ou desesperadas, nem cães latindo. Aliás, não vi quase ninguém, essa é a verdade. E passo a entender o dono da lanchonete.

- Aquele imbecil a comer hamburguer, ovos fritos, queijo e alface dentro de um pão imenso num dia assim. - Deve ter pensado isso.

Tentei me situar, mas havia ainda muitos ecos da noitada anterior que impediam qualquer esforço para concentrar-me no volumoso dos fatos. Eu tentava entender a reportagem e, ao mesmo tempo, relembrar os acontecimentos da noite anterior. Esforçava-me pra recobrar alguns detalhes escondidos não sei onde, e era difícil saber quais exatamente foram as pessoas que estiveram ali comigo. A memória, severamente confusa e comprometida, bem mais fácil então  prestar atenção ao programa jornalístico na TV.

Dava a impressão de uma grande emergência, quase uma daquelas calamidades bíblicas de gafanhotos sobre as lavouras. Passavam videos profissionais e amadores. Um deles mostrou um grupo enfurecido de motoristas de caminhão invadindo um posto de gasolina. Em seguida, imagens aéreas de um congestionamento gigantesco numa rodovia em São Paulo. Acidentes automobilísticos envolvendo centenas de carros, aeroportos fechados, lojas de alimentos invadidas em Curitiba. Fúria nas favelas, medo nas ruas centrais dos grandes centros, caos no Rio e outras capitais do país, EUA, México, China. Em Londres, a coisa parecia bem pior. Deus do Céu, o que era aquilo, afinal?

Fui até a geladeira e abri uma cerveja. De volta ao sofá, cobri-me com um cobertor. Foi o suficiente. Cai no sono mais uma vez.

De madrugada, ouvi batidas fortes na madeira da porta e acordei de um sono sem sonhos. Deu para ouvir uma voz suplicando, mas o som da TV a suplantava. A TV iluminava as paredes da sala com intensidade variada de brilho, meia-luz e sombras se alternando. O som das batidas misturava-se à voz monótona de uma mulher em oração num programa religioso, aqueles programas de igrejas, seitas e seus pregadores. Estava muito frio e sentia-me confortável sob a coberta grossa de lã. Não levantei. Tive medo. Esperei até as batidas cessarem, a respiração contida, os olhos fixos na porta da sala

Mas quem lá estava, seja quem fosse, poderia até ser uma amigo, se foi, restando apenas a voz monótona de uma mulher de meia-idade em oração na tela.

Ela repetia sem parar uma evocação minimalista ao Senhor. O olhos estavam voltados para baixo, e um véu branco encobria boa parte dos volumosos cabelos grisalhos que não chegavam a tocar os ombros. Aquela repetição - calma, lenta e cadenciada - durou mais uns dois minutos. Era tranquila. E o teor era de agradecimento, puro e total agradecimento por todas as coisas e dádivas neste mundo. Ao seu término, um silêncio breve e solene, seguido de imagens de um  imenso jardim de margaridas brancas iluminadas pelo sol. Nenhuma música de fundo, nenhuma legenda ou qualquer mensagem posterior.

Lá fora,  o leve som da chuva batendo finamente na calçada, e que agora se fazia ouvir.

A cortina da janela estava aberta e dava para olhar através de parte da vidraça. E eu vi enormes bolas de fogo caindo do céu. E tudo se iluminou por inteiro.

Marco Antonio.

PEIXES SOB A SUPERFÍCIE



Num dia chuvoso qualquer, um cachorro mordeu a perna de uma criança. O pai saiu com um porrete, mas o cão fugiu, dobrando a esquina, mais rápido do que os olhos puderam perceber. E todos ficaram ali, fazendo volume, observando o pai do menino com um porrete na mão dando voltas em torno de si e em busca do cachorro, enquanto estava lá a criança sentada chorando na calçada, a palma da mão sobre a ferida. 

Quando a chuva caiu de vez, o dono da padaria pulou veloz o balcão, pegou o menino nos braços e o levou para dentro. Mas o pai continuava rodando como um tonto, tentando em vão encontrar o animal fujão, enquanto a criança permanecia chorando nos braços do padeiro. Eu jamais havia visto alguém tão perdido. 

A mãe não estava lá, dizem que estava viajando. Comenta-se que fugira com outro, um amante,  fazia quase duas semanas, é o que se comentava. Mulher outrora muito bonita, casou cedo e teve esse único filho já tardiamente. O marido, um homem cumpridor dos seus deveres com a família e trabalhador; e, por isso mesmo, ninguém encontrava razões, afora as do coração, para ela ter esse tal amante, bem como nunca se viu os dois juntos ou coisa que o valha.

Mas o certo é que ela não estava lá quando a criança fora atacada pelo animal; apenas o pai com um porrete na mão e olhos perdidos mirando coisa alguma à procura de um cão para não se sabe mais o quê.

O dono da padaria puxou o pai pelo braço e o levou para dentro. Precisava que alguém o fizesse, pois a chuva engrossara muito. Coitado do pobre, todo molhado, porrete na mão à busca de um cachorro que ninguém poderia saber onde estava. Foi dona Esmeralda, uma mulher muito gorda, quem o fez perceber, aos gritos, que a criança estava com a perna sangrando e a chorar, precisando ser levada para fazer um curativo, tomar vacina, algo assim, coisas que só o pai poderia fazer naquele momento. 

Então ele pegou o filho nos braços e o colocou no carro, saindo em disparada para o hospital. A chuva não parava de cair. No bar, ao lado da padaria, os homens voltaram ao baralho.

No meio da tarde do sábado, o pai voltou, mas sem o filho. Deixara a criança de sete anos na casa de uma parente e apareceu sozinho. Mas tão logo estacionou o carro na garagem, foi direto para a casa amarela. E daí o desentendimento com o dono do cachorro, agora que já se sabia de quem era o animal. O filho provavelmente contara tudo, que estava atravessando a rua e, sem mais nem menos, o cachorro da casa amarela viera em disparada atacá-lo. Os cães são assim, eles aparecem do nada e avançam sobre qualquer vivente sem razão. Mas um pai não quer saber da falta de racionalidade dos animais quando um filho é atacado.

Não se sabe como foi a suposta discussão, pois estavam apenas os dois - o viúvo, dono do cachorro, e o pai do menino. O velho da casa amarela veio a falecer no meio da noite, vítima de um derrame. Alguém percebeu a luz da varanda acesa um pouco antes da meia-noite. O velho sempre a apagava antes de ir dormir. Dois vizinhos foram lá, deram um jeito de entrar e se depararam com aquele senhor paralisado na cama. Levado ao hospital, logo veio a falecer.

No domingo, por volta das dez horas da manhã, chegaram os parentes do falecido, um monte deles, uma gente muito estranha e saída não se sabe de onde. Ninguém nunca os tinha visto. Um deles, muito nervoso e aborrecido, cabelos volumosos e brilhosos, como que untados com óleo, jaqueta preta de motoqueiro, tatuagens em ambos os braços, jurou vingança e fez cara feia, falando impropérios para os curiosos. No meio da tarde, num bom carro do ano, chegou o chefe. Era o chefe, pois o reverenciavam com um gesto de cabeça quando ele passava, terno e óculos escuros, botas bem lustradas, manco de uma perna. Embora visivelmente manco, era como se não fosse, pois os demais desviavam o olhar.

Após o funeral, ocuparam a casa do falecido e também a do pai do menino. Ninguém ousou fazer uma reclamação sequer, nem mesmo os amigos dos donos dos imóveis. Dali em diante, tudo mudou. Vários moradores do local, os que podiam, foram mudando para outro lugar. Mais e mais estranhos chegavam, dia após dia, sempre em grupo, comprando tudo para ali se instalarem definitivamente com suas mulheres e filhos.

Não se sabe por quais valores, mas o certo é que adquiriram os bares, a padaria, a mercearia grande, a mercearia pequena, a pousada, as duas farmácias, o posto de gasolina, além de prédios e casas para moradia. Veio até um outro padre em substituição ao antigo. São muito católicos, pelo que se percebe, e enchem o templo aos domingos. Os daqui não frequentam mais. 

O chefe mora na casa amarela. É um entra e sai constante, mesmo tarde da noite ou nos finais de semana, exceção para os horários de celebração na igreja. O cão do velho - aquele que mordera a perna do menino - está sempre na calçada em frente, deitado e atento, como que guardando e vigiando a entrada. E late, levantando-se ameaçadoramente, quando um estranho passa.

Fico a pensar sobre onde estavam todos eles antes do incidente com a criança. De qual lugar vieram para invadir nosso lugar e nossas vidas? Imagino que, de alguma forma, estivessem sempre prontos para emergir, como peixes nadando sob a superfície.


Marco Antonio. 

NÃO SEI AO CERTO COMO TUDO COMEÇOU


Eu não saberia dizer ao certo como tudo começou. Já passava das três da tarde e fazia um calor desgraçado, o ar seco, o sol batia no rosto e eu tinha que apertar os olhos porque doía muito aquela luz intensa e abundante vinda do alto, da frente e dos lados.

No verão, não é fácil viver por aqui. O sangue esquenta, a gente se irrita fácil, os nervos ficam à flor da pele. Um calor desgraçado, de dia e de noite.

E aí vem um carro e passa bem pertinho, raspando a minha roupa e buzinando alto. Um susto enorme. Acho que foi assim que aconteceu.

Quando dei conta, já estava no hospital. Horas depois, acordei. Disseram que havia sofrido um "pequeno" derrame. Um braço estava meio largado e eu não lembrava de muita coisa. Lembro bem da minha mulher ali em pé, abatida, olhos vermelhos, aquele olhar assustado voltado para mim. Fiquei internado por uns dias, fazendo um monte de exames, disso e daquilo, e finalmente voltei para casa.

Penso ainda que aquela buzina me deixou assim, e a vida não foi mais a mesma de antes.

Mas, antes disso, houve outra coisa. Devo contar. Foi quando abri aquele bilhete escrito com letra de homem. Ainda não entendo como em um mundo de computadores, e-mails, celulares e mensagens eletrônicas alguém ainda escreve bilhetes para a mulher de um outro homem. 

- Você vai ser minha hoje. Ás 3. No mesmo lugar, ok?

Fosse uma mensagem de celular, tudo poderia ser diferente.  Não haveria bilhete e eu não saberia  de nada, Mas aquele bilhete teve de ser lido, porque ela o deixou ali, em cima de um móvel do quarto. 

- No mesmo lugar, ok?.

Eu pensei: - Não é a primeira vez. Eles têm um lugar, um lugar deles.

Eu deixei o bilhete ali, fechado, do jeito que encontrei, na mesinha ao lado da cama. Deixei acontecer. Eu sabia que as coisas não andavam bem entre nós e não encontrei forças para impedir. 

- No mesmo lugar, ok?

Ora, já havia acontecido e pronto. Foi assim que interpretei. Se não fosse naquele dia, seria em outro. Aliás, já tinha acontecido antes, no mesmo lugar.

Fui para a rua e fiquei por ali, zanzando, sem saber para onde ir, imaginando qual seria “o mesmo lugar”. Foi quando aquele motorista fez o carro passar raspando em mim e buzinou alto. Talvez eu estivesse no caminho dele, sei lá, talvez a culpa tenha sido minha. Em certas situações, nunca se sabe de quem é a culpa. O certo é que estou aqui, desse jeito, um braço largado.

Eu poderia ter evitado, bastando não sair de casa, ou ter tomado cuidado ao atravessar a rua, ou não abrir aquele bilhete. Ou talvez, bem antes, muito antes, ter evitado que a vida tivesse tomado o rumo que tomou. Mas não há com se prevenir do imprevisto. Não há como saber qual será a consequência de certas ações e de um gesto banal, de uma ou outra palavra que a gente fala para alguém. O médico argumentou sobre a minha má alimentação, o sedentarismo, o cigarro que não havia parado de todo. Nada é uma coisa só. Uma coisa junta com outra e você nem sabe por que veio parar neste lugar. Eu não saberia dizer como tudo começou.

Logo após o acidente vascular, não falamos  sobre o bilhete. Afinal, o que eu poderia pedir, se  perguntasse sobre o bilhete? Poderia ser o fim. Ela teria ido embora e eu ficaria sozinho, com um braço largado.

Então eu abordei de outra maneira, indagando sobre ela estar com um marido meio aleijado, sendo ela uma mulher ainda bonita, vistosa e atraente. A reação dela foi chorar. Num piscar de olhos, derramou a chorar como uma criança. E eu fiquei olhando, comovido, esperando ela poder falar. Depois eu disse que deixasse pra lá aquela bobagem minha.

Mas aí ela começou a falar e a se lamentar. Você sabe como é, quando se quer colocar um mundo inteiro acumulado para fora. A minha mulher começou a contar uma história comprida de infelicidade e de uma vida de desilusão. Conversa de mulher, é verdade... Uma história comprida e  cheia de detalhes, detalhes vindos de do fundo da alma, de um passado distante, de um namoradinho do colégio e de quem ela  gostava tanto, quando ainda era uma garota bem nova e cheia de sonhos bonitos.

Se ela não contasse, eu não saberia nunca daquele mundo desconhecido que havia dentro dela, das decisões erradas, de ter me conhecido, da infelicidade de não termos um filho.

Fiquei ali, parado e olhando para ela, com meu braço largado e solto ao lado da poltrona, ouvindo e sem me mover, apenas ouvindo. Deu vontade de levantar e dar um abraço forte na minha mulher, mas não tive energia.

Não toquei no assunto do bilhete. Nem tive coragem. Apenas praguejei, não com certa dose de fingimento, amaldiçoando o calor e a hora em que aquele carro, do qual nem me lembro a cor, ter passado  por mim e buzinando tão alto.


Marco Antonio. 

CANÇÃO DO OESTE


Ontem, tarde da noite, assisti a um bom faroeste. Canção do Oeste, rodado em 1965 e ambientado no século XIX, do diretor Ted Kholman, o mesmo de Terra Primata.

A história se passa, em sua primeira parte, no Texas. John, o protagonista, é xerife em um cidade violenta, casado com a bela Samantha, interpretada por Caroline Peterson.  Ao contrário dos demais filmes de sua longa carreira, Peterson usa cabelos loiros, contrastando com os conhecidos olhos negros enormes que a fizeram famosa.

A cidade é infestada de bandidos e, frequentemente, alvo de uma quadrilha de ladroes de gado. É o ambiente clássico do gênero. Mas as semelhanças com os demais filmes de faroeste parecem ficar só por aqui.

John é um homem bom, manso, muito sério, amoroso, embora corajoso. Faz bem o seu trabalho, e é apaixonado pela mulher. Por outro lado, ela o atormenta o tempo inteiro, dizendo não mais aguentar aquela vida de espoa de xerife.

-  Nunca sei se você vai voltar! -  ela repete (esse batido clichê) e joga na cara dele o quão se sente virtualmente viúva. Sonha viver outra vida, a vidinha pacata das mulheres casadas com homens normais. Como bem se vê, a tirar somente por essa passagem, o  filme é de temática universal. O longa retrata a vida desse homem dividido entre a família e suas obrigações com a lei e a comunidade. Nada mais comum.

Tem aquela cena do saloon, e que ficou famosa no livro História do Cinema, do crítico Sam Adams, na qual um bêbado levanta-se e vai em direção ao balcão e tropeça nas pernas de um forasteiro de cara ruim. E então leva um tiro e cai morto. O xerife adentra o ambiente no exato momento e, sem pestanejar, saca a arma e a aponta para o assassino, ordenando que se renda. O forasteiro mira o xerife. É tudo muito rápido. Todos os presentes se afastam. Em seguida, a cena corre lentamente: Há um longo momento de tensão, silêncio e suspense. Finalmente, o dono do bar (interpretado por Arthur Kennedy - ele fez essa "ponta", mas ironicamente uma cena que se tornou ontológica)  pega a arma debaixo do balcão e atira fatalmente no agressor. A câmera enquadra a expressão de Arthur Kennedy, já com sua famosa expressão de homem atormentado.

Enfim, diferentemente dos filmes do gênero, não é o herói que abate o malfeitor com seu gatilho certeiro. Embora John, o herói, decida enfrentar o assassino sem temor e, muito provavelmente morreria no confronto, é o dono do bar, normalmente um figurante, quem mata o facínora. Na  maioria dos filmes, o dono do bar é o primeiro a se esconder embaixo do balcão.

Num dado ponto, há uma reviravolta, quando Samantha fica grávida. Numa manhã, após ter passado a noite em claro numa caçada a bandidos ladrões de gado, o marido chega em casa e encontra a mulher em prantos. Ela faça mais uma daquelas cenas. Então John a toma em seus braços, arruma as coisas e vai embora.

Kholman mostra a partida do casal numa tomada ampla, a paisagem árida e plana do Texas, a vegetação rasteira e pouca, porções imensas de chão desnudo, elevações rochosas ao fundo. Ao longe, a charrete na qual iam os dois. E a poeira.

Após o que, o filme dá um salto de alguns anos no tempo e mostra John, Samantha e a linda filhinha Anne instalados numa cidade mineradora da Califórnia.

John é agora trabalhador de uma mina. Um proletário. Ao contrário de antes, temos agora um homem endurecido pelo trabalho, grosseiro, sujo, sempre desalinhado, o exato oposto do xerife do início do filme. Antes, na qualidade de representante da lei, um contraponto à barbárie da fronteira violenta, era obrigado a manter o ar de civilidade, sempre limpo, barbeado, roupas decentes. E com o ar de "tudo sob controle".

Samantha, óbvio, ressente-se disso. Não mais sob o temor da perda,  ou  por dormir sozinha sem saber se o marido voltará de uma caçada a ladrões de gado, não mais pela ameaça constante da viuvez. Agora são os modos rudes do marido que a deixam infeliz. Em resumo, a mulher sempre insatisfeita. Tanto início do filme, mais ainda agora.

Então o nosso diretor dá outra reviravolta, quando ela, não mais suportando estar casada com um trabalhador braçal e rude, uma mulher bonita para atrair qualquer homem neste mundo (Kholman enfatiza ainda mais com tomadas em "close", enquadrando na tela a beleza de Caroline Peterson), foge com um jovem aventureiro, um forasteiro galante e mentiroso, claramente um bandido.

O filme termina de forma magistral - Ted Kholman joga na cena final todo o seu talento como diretor de câmera - e mostra John entrando na mina, e a câmera o acompanha, o túnel de entrada vai ficando cada vez mais estreito e escuro, e o teto cada vez mais baixo e enegrecido, enquanto John curva-se mais e mais a cada passo que dá.

Não há trilha sonora ao longo do filme, uma música sequer, apesar do título "West Song". E termina como começou, em silêncio absoluto, quando não mais se vê o herói na escuridão da mina.

Eu indico.

Marco Antonio.