21.10.09

SANTA MARTA


Atympal trabalha na companhia de abastecimento de água e rede de esgoto de Santa Marta, como chefe da contabilidade. Tudo muito organizado, as faturas emitidas rigorosamente na data, sem erros, sem inadimplência, vez ou outra um atraso no pagamento, por conta de um esquecimento qualquer, coisa tão fácil de resolver.

A água da cidade, desde sempre, é retirada do subsolo, de um aqüífero profundo e imenso, sugada por bombas enormes e possantes. Exceto, quando por algum problema de vazamento numa tubulação, há a rara interrupção temporária do fluxo. Afinal, a água é o orgulho desse lugar. Água mineral e limpa, com os teores certos de sais minerais, é o que atestam os estudos de laboratório. Água limpa - uma cidade limpa e uma vida limpa -, é o que todos esperam de um bom lugar para se morar, criar os filhos e envelhecer com tranqüilidade.

No final de cada mês, fechada a contabilidade mensal, os livros, as faturas, duplicatas e relatórios devem ser enviados para o lugar certo. Tudo no prazo, com exatidão e eficiência. Atympal não sabe dizer para qual lugar vão a papelada e o dinheiro. Não há motivos aparentes para se preocupar com isso – pensa ele -, pois a água jorra permanentemente, e isso é tudo o que importa para a companhia e seus empregados.


Contudo, mesmo a contragosto, ele indaga secretamente sobre a existência de algum lugar fora de Santa Marta... "algum lugar, sabe lá Deus, além do deserto e das montanhas". Imagina pessoas que ele não conhece a analisar o seu trabalho e a conferir os balanços. Mesmo porque, embora pouco se comente a esse respeito, fica evidente a impossibilidade de se produzir em Santa Marta tudo que nela se consome - enlatados, medicamentos, filmes, roupas de malha e perfumes. Mas se os balanços e o dinheiro vão para algum lugar – ele conclui -, secretamente a cidade é abastecida. Por outro lado, se tudo corre normalmente e o sistema nunca falhou; se a vida é tranqüila e dócil com todos, por que insistir em saber mais do que é dado a saber?

Em sendo assim, Atympal desempenha bem o seu papel como chefe da contabilidade, mantendo seus subordinados ocupados apenas em registrar, organizar e conferir, mesmo sabendo que eles podem fazer o mesmo tipo secreto de indagação sobre a realidade. Por sua vez, os seus superiores o mantém alheio e protegido dos demais detalhes e aborrecimentos sobre o completo funcionamento da empresa. O funcionamento da companhia de água e esgoto é o reflexo do restante da vida em Santa Marta, da sorveteria à loja de cosméticos.

Em seu círculo de relacionamentos, apenas Luiza, sua esposa, exterioriza com o ponto de interrogação para a existência. Ela vive a perguntar sobre isso e sobre aquilo, até mesmo irrelevâncias de como e onde são feitos os filmes. E ele, como bom burocrata da companhia de água da cidade, procura mantê-la longe dos desvarios e do vício do inconformismo, de forma semelhante ao método utilizado para manter seu departamento contábil em ordem.

Não fosse o hobby da pintura - ele lamenta consigo-, seria impossível a convivência com a esposa. Ela não trabalha fora e tem tempo de sobra para sonhar. Como eles não têm filhos, ela dedica-se a pintar quadros, dia após dia. Os temas se repetem – o deserto, as montanhas, paisagens verdes além das montanhas e do deserto, vilas longínquas, outras formas de viver – tudo isso encarado por todos como fruto da imaginação fértil de artista amador, aceitável apenas como passatempo de uma dona de casa ociosa.

Ele a conhece bem e a protege. Estão juntos desde a escola primária. Naquela época, já distante, mas ainda presente na lembrança, foi ele quem desviou seu olhar de um imenso balão prateado que tão logo sumiu no horizonte.
Marco Antonio, 2009.