8.2.07

CRÔNICA DE UMA AUSÊNCIA


Aconteceu no mesmo dia em que uma estação de rádio anunciou, tarde da noite, um acidente de ônibus. O locutor enfatizou a proporção, detalhou sobre o local e as circunstâncias, prometendo divulgar, antes mesmo dos primeiros raios da manhã, os nomes dos envolvidos e a situação de cada um. Permaneci então ao lado do pequeno rádio, aguardando a lista dos acidentados e dos prováveis mortos. Decerto sabia que o desastre houvera acontecido numa outra região; a rádio, por sinal, era de longe; o sotaque do locutor, de gente do sul. E eu estava à espera daquela listagem, nada além dos nomes que me soariam todos iguais e sem identidade.

Eu imaginei a cena, o ônibus caído no fundo de um despenhadeiro, luzes na pista, ambulâncias, carros da polícia, um homem sentado no chão negro do asfalto. Imaginei poder ver, num jornal do sul, uma foto do acidente estampada numa página interna. Mas uma fotografia, já tirada durante o dia, de nada me faria lembrar da sensação daquela noite.

Na manhã seguinte, as nuvens se adensaram. A meteorologia anunciou uma frente fria. Choveu muito naquelas duas semanas. Foram dias ruins, úmidos, embaçados e frios. A minha rua foi invadida por uma lama vermelha que descera das encostas e, no entrar e sair, sujava-se facilmente as roupas e a casa. A TV anunciou que a frente fria havia estacionado, explicando aquela invernagem em pleno verão. Na Segunda-feira, choveu durante vinte e quatro horas e o rio transbordou, provocando uma enchente só comparável à de 62. A água subiu setenta centímetros dentro de casa e, na Terça-feira, ficou lama sobre o sofá, cadeiras, camas e por dentro das gavetas.

Não consigo bem descrever o que se sente numa situação como aquela, quando se descobre, no dia seguinte, sob a implacável luz de um sol que ainda não se vê, em meio à toda sujeira, todas as coisas perdidas. Enquanto a água não desce, não se percebe exatamente o que está acontecendo, como se a nossa compreensão estivesse também submersa.

Após quinze dias, a chuva se foi de todo; e a cidade, de um jeito ou de outro, foi lentamente voltando à normalidade. O passado objetivo foi divulgado nas estatísticas dos prejuízos, perdas e mortes, arquivando-se em números. Nas mentes, a perplexidade. Mas quando o sol volta a encher de luz o espaço, e o céu azul se abre, somos obrigados a aceitar que não se pode viver como se ainda houvesse água barrenta do rio penetrando em tudo.

No mês seguinte, voltei ao mar e revi os amigos. Da praia, avistei um enorme navio branco navegando em águas tranqüilas. E, numa dessas noites quentes, Helena voltou.


Marco Antonio, 1991