31.10.13

VAI LÁ, MEU AMIGO!



- Vai lá, meu amigo!! Veja só como ela está olhando pra você!! Vai lá!!

Eu o empurrei e ele caminhou, uns passos meio sem jeito no início, se ajeitando no meio do caminho, tomando coragem para abordar a mulher logo à frente. Quando chegou mais perto dela, ela sorriu. A meu ver, não tinha como ser diferente. Aquela mulher passara a noite inteira com os olhos nele. Decerto que seu jeito era vulgar, a saia muita curta mostrando as coxas grossas, os cabelos eram pintados de um loiro bem claro e artificial, sem falar na barriga, gordinha, de fora. Como eu vi que a coisa iria andar bem, fui ao sanitário do bar.

Ainda por lá, ouvi uma gritaria e o som de vidro se quebrando. Corri. Um garçom agarrou-me pelo braço: - nem vá lá” - disse ele. Logo em seguida, veio outro a me segurar. À frente, o meu amigo apanhava feio de três caras. Nem sei de onde apareceram. Que covardia era aquela, meu Deus, ficar assistindo a um amigo cair na porrada contra três homens fortes e especialmente violentos? Mas só quando os agressores correram, os garçons me soltaram. Fui olhar estrago. Começara a chover. O sangue escorria na calçada.

X X X

Visitava o amigo quando podia. Ele passava boa parte do dia numa cadeira-de-rodas, o olhar virado para o chão, babando pelo canto da boca, e um babador preso na camisa. Não falava. Virou quase um vegetal. Olhando para ele, claro, a minha culpa adquiria tamanho descomunal. Não tínhamos pistas, o bar fechou, os garçons disseram à polícia nunca terem visto aquelas tipos antes, e nem depois, nem  mesmo a mulher. Mas falaram que a briga parecia ter sido por causa dela, ciúme de um deles. E ficou nisso.

Não demorou muito e meu amigo começou apresentar complicações nos rins e no resto.  Foi ficando a cada dia pior. Morreu pouco mais de dois anos após o incidente. Como eu dissera, o bar fechou.

X X X

Mas abriram um outro no mesmo lugar, outros donos, outro nome, um lugar bonito mesmo, bem transado, e freqüentado por jovens classe-média e jeito de rico. Apenas as músicas não diferiam muito, pois todos parecem ouvir as mesmas porcarias neste mundo.

Mesmo com aquela sensação de peixe fora d'água, passei a frequentar. Nem sinal das mulheres de antes. Uma pena, porque sempre tive queda pela vulgaridade. Essas do novo estabelecimento são muito limpas e metidas, passam sem olhar para o lado, embora eu saiba que, junto aos rapazes do mundo delas, são vagabundas como aquelas do outro bar.

Por sorte, conheci uma garçonete de lá. Bonitinha . Ao contrário das clientes, dava-me atenção, sorria, era educada e gentil. E eu dava gorjetas. Assim, como se diz, na simpatia, trocamos os respectivos números de telefone. Depois, passamos a nos encontrar, no meu apartamento, nas noites de segunda - era o dia de folga dela -, ou nos finais de noite, quando ela saia do trabalho. Assim como as moças que freqüentavam o barzinho não davam a mínima pra mim, a garçonete queixava-se dos clientes, e dizia  "eles nem olham pra gente, ou então pensam que somos putas, e há os que são muito grosseiros, querem passar a mão.  As mulheres não passam a mão na gente, mas são piores."

Nessas nossa boas e animadas conversas, comentei, claro, sobre o antigo bar e o que acontecera com meu amigo. Ela revelou que sabia de tudo. Tudo mesmo. Além de ter lido no jornal, namorava um garçom que era amigo de um daqueles garçons que estava trabalhando no dia em que aconteceu a briga. E foi aí que comecei a entender as coisas, mais ou menos, eu acho. Foi a coisa mais terrível que poderia ouvir sobre o que de fato acontecera. Fiquei assustado, enquanto ela fazia o relato com aquela sua voz doce, falava lentamente, num ritmo bem marcado.

Verdade ou não o que ela dizia, era bom o rosto dela recostado em mim. E a janela do quarto estava aberta, deixando entrar o ruído bom da chuva que caia suavemente.

Marco Antonio, 2013.

30.10.13

ELES




Eu os vi pela primeira vez naquele bar, numa mesa bem próxima à nossa. Em número de quatro. Lembro que os achei estranhos. Comentei com meu amigo, e ele disse não ter notado nada de anormal, nem nas roupas, na aparência ou nos gestos. Inclusive consumiam a mesma marca de cerveja que estávamos bebendo, disse ele, em tom de gozação. Eu e meu amigo estávamos ali para trocarmos ideias sobre a compra de um imóvel, pois ele entendia bem do ramo, e eu o convidara para essa consulta. Compre agora - deu a opinião de profissional -, pois os preços vão subir. Vão subir, pode acreditar em mim. O mercado imobiliário está aquecido, e quem tem dinheiro está comprando. Se esperar, meu amigo, pode perder essa ótima oportunidade ou vir a comprar mais caro daqui a um mês. Ele era bom naquilo, inteligente, bem informado, sempre certeiro. E eu me decidi de imediato. Além disso, era confiável, e éramos amigos, bons amigos. Terminamos o jantar na certeza de que faria o negócio logo na manhã seguinte. Na saída, passamos pela mesa dos caras estranhos, e nenhum deles deu pela nossa presença. Alguma coisa os fazia diferente de nós.

A manhã seguinte foi a daquele dia fatídico em que os EUA fecharam seu espaço aéreo, proibindo todos os vôos comerciais, seguidos pelo Canadá, Reino Unido, México, União Europeia, Rússia, China, Israel, Austrália, Índia, Egito, Irã e, na rabeira, quando os satélites já estavam fora de ação, e nem mais tínhamos internet ou celulares, foram acompanhados pelo Brasil e demais da América do Sul. Sem falar na horripilante queda e fechamento das bolsas e das agências bancárias.

Logo antes do almoço, quando cheguei em casa, depois de pegar um trânsito totalmente caótico, encontrei a minha mulher tentando, em vão, selecionar algum canal de TV.

- Só chuvisco, você viu? Todos estão assim - ela comentou com ar de interrogação, parada no meio da sala, mostrando o controle remoto pra mim.
- Ligue o rádio - eu sugeri.
- Fechou o negócio? - ela perguntou. Exibia um belo sorriso de esperança no rosto.
- Não deu...
- Deus do Céu... - Ana lamentou, sentando-se no sofá da sala, deixando cair o controle remoto no chão - perdemos a maior oportunidade de nossas vidas... E com ar de desolação, perguntou: - E o que está acontecendo, afinal? Estamos sem TV...

Nenhum de nós sabia o que estava acontecendo, nem quanto tempo duraria, ou que pioraria muito logo depois. No início da noite, carros da polícia fecharam as avenidas principais da cidade e houve anúncio, pelas estações de rádio, de toque de recolher. As emissoras também não diziam nada além do necessário. Estávamos no escuro, como se diz. Uma nota presidencial, também pelo rádio, anunciou o fechamento das escolas, dos estabelecimentos comerciais e shoppings, pediu que ninguém saísse de casa, nem mesmo para trabalhar. Apenas os hospitais ficariam abertos, sob forte proteção da polícia e do Exército. Não deu explicação nenhuma. E terminou  pedindo a todos confiança em Deus e na humanidade.

- Você viu o que disse aí?! - Ana explodiu com essa frase - Você sabe o que significa o presidente pedir confiança na humanidade, enquanto os bancos não abrem, não temos supermercados e nem TV?
- Isso é retórica de político, pediu confiança em Deus. Todos fazem isso, em qualquer circunstância - tentei acalmá-la -, é de praxe, os caras que escrevem os discursos já têm isso de cabeça pra qualquer fechamento.
- Pediu para termos fé na Humanidade, meu bem... qual a última vez em que você ouviu algo assim de uma autoridade?!- ela ficou olhando pra mim. Calei.

Os dias seguintes foram como um rolo compressor de notícias e boatos ruins. Falta de energia, de água, saques, caos nas ruas. Pavor absoluto. Para nossa sorte, por um tempo teríamos um bom estoque de comida e enlatados, e só havia nós dois em casa. Mas tínhamos medo de que os vizinhos viessem. Não ousávamos sair, não abríamos as portas do apartamento e nem as janelas, apesar do calor sufocante. Não foi fácil permanecer ali daquele jeito. Mas qual seria a alternativa?

A minha mulher deixou de lado aquele seu nervosismo inicial, talvez por perceber mais do que eu a respeito do poço onde nos encontrávamos naquele momento, embora não soubesse nada, nada mesmo, sobre o que de fato havia causado tudo aquilo. Mantinha uma serenidade nos gestos e nas palavras, preparava a comida, respeitava os horários das três refeições, arrumava a mesa e a nossa cama, colocava os objetos no lugar. Vê-la varrendo a casa dava um pouco de esperança. O mundo e a civilização lá fora desmoronando e deixando de existir, e ela varrendo a casa. As últimas imagens daquele mundo a que estávamos acostumados desde criança, e que ainda carrego na mente, é a de Ana tentando manter as coisas em ordem dentro de casa.

Depois não teve mais jeito. Saímos à procura de água e comida. Fazer isso e fugir do inferno da cidade. Nessa fuga de todos, grupos perseguiam grupos, um mundo de pessoas fugindo e com medo de tudo.  Para nossa infelicidade maior, Ana e eu nos perdemos um do outro. Nem mais uma vez a vi, e nem lembro o momento e como ela se afastou e sumiu. Qualquer traço de esperança se esvaiu.

Agora, anos depois, dizem que já temos alguma normalidade, se é que isso pode ser chamado de normalidade, na verdade um caos ao qual nos acostumamos mais. Nos últimos tempos, tenho notado cada vez mais a presença deles. Estão em toda parte, indo e vindo, misturados. De vez em quando, numa ou noutra parada, comento com alguém sobre o jeito certo de olhar e identificá-los. Mas poucos dão atenção, medo também. Determinadas pessoas parecem saber exatamente o que eu sei, mas logo se afastam, como se pessoas como nós não pudessem estar perto uma das outras.

E o tempo foi passando. Do mesmo modo,  fui deixando pra lá. Nada há a fazer, o passado é irrecuperável em si.  Não alimento nem mesmo a menor esperança de que o nosso mundo volte a ser como antes algum dia. De vez em quando, raramente, tenho um sonho bom, as cidades erguidas novamente,  a casa arrumada, e Ana sorrindo pra mim.

Marco Antonio, 2013.