18.4.06

INCIDENTE


Ontem foi um dia chuvoso. Na rua, um cachorro mordeu a perna de uma criança, e o pai saiu com um porrete, mas o cão fugiu, dobrando a esquina, mais rápido do que os olhos puderam perceber. E todos ficaram ali, observando o pai do menino com um porrete na mão, dando voltas em torno de si, em busca do cachorro, enquanto estava lá a criança sentada e chorando na calçada, a palma da mão sobre a ferida. O dono da padaria pulou o balcão, pegou o menino nos braços e o levou para dentro, porque logo começou a chover de novo.

Mas o pai ficou rodando como um tonto, tentando em vão encontrar o animal fujão. Uma pena, a criança chorando nos braços do padeiro, pois a mãe dele não estava lá, dizem que estava viajando. Ninguém sabe ao certo o que ela foi fazer e nem para onde foi. Comenta-se que fugiu com outro, faz quase duas semanas, com um antigo amante, é o que se diz por aí. Mulher outrora muito bonita, casou-se cedo e teve esse único filho. O marido, um homem sereno e trabalhador; e por isso mesmo ninguém sabe explicar por que ela tem esse tal amante, bem como nunca se viu os dois juntos ou coisa que o valha, talvez coisa das más línguas do lugar. Mas o certo é que ela não estava lá quando a criança foi atacada pelo animal; apenas o pai, com um porrete na mão, olhos perdidos a mirar coisa alguma, à procura de um cão para não se sabe mais o quê.

O dono da padaria puxou o pai do menino pelo braço e o levou para dentro. Precisava que alguém o fizesse, pois a chuva engrossou muito de uma hora pra outra. Coitado do pobre, todo molhado, porrete na mão, sem saber o que fazer. Foi dona Esmeralda, uma mulher muito gorda, quem o fez perceber que a criança estava com a perna sangrando e a chorar, precisando ser levada para fazer um curativo, tomar vacina, algo assim, coisas que só o pai poderia fazer. - Onde já se viu um pai ficar tão perdido numa situação como aquela, sem ação. E qual serventia teria o cachorro naquele momento para fazer aplacar a dor do menino? Foi aí que ele parece ter retomado a razão, pegou o filho nos braços e o colocou no carro, saindo em disparada para o hospital.

Hoje é domingo. No meio da tarde do sábado, o pai voltou, mas sem o filho. Deixou a criança de 7 anos na casa de uma parente e apareceu sozinho. Mas tão logo estacionou o carro na garagem, foi direto para a casa amarela e daí o desentendimento com o dono do cachorro, agora que já se sabia de quem era o animal. O filho provavelmente contou tudo, que estava atravessando a rua e, sem mais nem menos, o cachorro da casa amarela veio em disparada atacá-lo.

Não se sabe como foi a discussão, pois estavam apenas os dois - o viúvo, dono do cachorro, e o pai do menino. O velho da casa amarela veio a falecer no meio da noite, vítima de um derrame. Hoje, pela manhã, chegaram os parentes do falecido, um monte deles, todos estranhos, saídos não se sabe de onde. Um deles, muito nervoso e aborrecido, jurou vingança, mas nada de pior aconteceu, haja vista a presença de dois outros mais ajuizados que o levaram embora. Sorte do pai do menino não estar ali na hora, pois havia ido buscar o garoto.

Já é noite, mas ainda não voltaram, nem o pai e nem o menino. Já são quase oito horas e a casa do garoto continua fechada. Um vizinho passou por aqui, faz uns quinze minutos, e comentou que provavelmente não irão voltar por esses dias, pois recebera uma ligação de alguém pedindo que tomasse conta da casa por uns tempos, até tudo se acalmar novamente. A mãe do menino também ainda não voltou.

Marco Antonio, 2005