16.2.15

MATANÇA


Ela dobrou a esquina e seguiu em direção à mercearia. Levava uma sacola plástica para comprar produtos de cozinha, pouca coisa, apenas o suficiente para fazer o almoço do dia. Era ainda cedo, umas oito e quinze da manhã, e o sol estava frio naqueles dias de inverno. Veio um vento de frente e ela segurou a barra da saia e foi andando de um jeito meio esquisito, uma das mãos à altura dos joelhos, para manter a barra da saia abaixada. Foi quando deparou-se com um cão atravessado na calçada. Ela deu um pulo para o lado, evitando pisar no animal morto. Ele tinha os olhos e as mandíbulas abertas, mostrava os caninos. Na cabeça, uma marca de sangue seco no pelo, e o que parecia ser um ferimento provocado pelo impacto de algo pesado. Provavelmente tratava-se de um animal de rua, vítima de ataque no meio da noite, coisa que vinha acontecendo com frequência de uns dias pra cá. Ninguém reclamaria por ele, por certo. Ela seguiu e, cinquenta metros à frente, entrou na mercearia. Estava vazia de clientes, apenas o proprietário arrumando a prateleira de produtos de higiene. Ela deu um bom-dia e recebeu um sorriso de volta. Pegou uma lata de molho de tomate, uma outra de ervilhas, uma garrafinha de vinagre, um pacotinho disso e outro daquilo, e foi em direção ao balcão de folhas verdes. Tendo comprado tudo o que desejava, dirigiu-se ao caixa. O proprietário foi atendê-la e deu um bom-dia, limpando as mãos uma na outra. Ela falou sobre o cão morto, perguntou se ele havia visto.

"Não" - ele disse - "Mas tem acontecido de matarem cães de um tempo pra cá."
"E  ninguém descobre quem está fazendo isso?" - ela pegou o dinheiro na bolsa, pagou, e recebeu o troco.
"Tem gente que imita. Podem ser vários, gente louca que mata cães, e talvez essas pessoas nem se conheçam, o que é bem provável, pessoas desconhecidas entre si. Tem gente assim. Pode ser coisa da internet, gente maluca e desocupada da internet." - ele olhou pra ela após dizer essas palavras, e mirou-a fixamente, até ela ficar desconcertada. Então pegou o dinheiro e pôs na gaveta, fechou a caixa registradora com uma chave pequena, fez a volta em torno do balcão e foi saindo. Ela o acompanhou.

O dono da mercearia andou a passos largos e rápidos e tomou a dianteira. Ela o seguiu, ficando mais atrás, e, de longe, o viu parar ao lado do animal e se abaixar por uns segundos e depois ficar novamente ereto, permanecendo ali por pouco tempo. Quando passaram um pelo outro, ele já de volta, o dono da mercearia a olhou fixamente mais uma vez, e prometeu ligar para o pessoal da prefeitura, mas afirmando não ter lembranças de ter visto aquele cão pelas redondezas.

Ela caminhou sem interrupção até chegar à sua residência. Não sem antes passar por um outro cão morto e, ao lado dele, ajoelhada, uma velha senhora chorando. Não parou, fez como se não tivesse visto. Apressou o passo. Chegou em casa com a respiração ofegante. Colocou a sacola de  compras na mesa da cozinha e deitou-se no sofá da sala. Quando a respiração acalmou, já havia caído no sono.

X   X   X

Lá pelas doze e meia, o marido chegou do trabalho e a encontrou dormindo no sofá. Ela não havia feito o almoço e nem nada, e a casa estava do mesmo jeito de quando ele havia saído para trabalhar. Quando ela abriu os olhos, desorientada ainda, sonolenta, ele a esbofeteou. E o fez mais uma vez, quando ela tentou levantar do sofá. Tudo muito rápido, não deu pra pensar e nem para entender nada, só colocar instintivamente os braços como proteção. A mulher cambaleou depois de chocar-se e bater a cabeça contra a parede, tentando em vão manter-se de pé, enquanto o sangue escorria-lhe, um fio saindo do canto da boca. Então ele aproximou-se dela, mais violento e rápido, decidido, o punho fechado, e a esmurrou mais vezes, batendo forte e sem parar. Em seguida, afastando-se menos que um passo, tomou uma pequena distância e chutou-lhe a barriga. Ela finalmente desmoronou de dor, ele deu-lhe um chute na cabeça. E a pancada fez um som surdo. Ela tomou uma lufada repentina de ar, emitiu um ruído estranho e jogou sangue pra fora, muito sangue. O peito arfava, indo e voltando, indo e voltando. A mulher tentou puxar ar, fez um ruído forte, e parou de vez.

Então ele saiu. Entrou no carro que estava estacionado em frente da casa, mas não deu partida na ignição. Ficou parado, as mãos ainda manchadas e repousadas sobre o volante, como que esperando alguém chegar, as pernas inertes, os braços quietos, o sol entrando pelo pára-brisas. E ficou ali. Era bom, morno, pois lá fora estava frio. E dava para ver as nuvens de chuva se aproximando.

Marco Antônio, 2015.