15.11.13

UM BOM CÃO POR PERTO




Quando chove muito e o sol demora a sair; as nuvens pesadas a encobrir o céu já sem chuva, notamos os cães abrirem a latir sem parar, tanto os próximos quanto os das casas mais distantes. E varam a noite desse jeito, como se houvesse a presença de uma ameaça pairando no ar acima ou abaixo das nuvens, ou sob a terra, nas raízes das árvores, ou além deste mundo. O que eles sabem ou pressentem, é ainda assunto para discussões -  uns dizem que cães são sensíveis a terremotos, tragédias as mais diversas cujos avisos prévios não chegam aos ouvidos humanos. Que é dado aos cachorros, mesmo aos vira-latas, saberem de coisas além daquilo que é dado aos humanos conhecerem por natureza ou ciência.

Numa dada noite, choveu muito. E o dia amanheceu de um jeito diferente, os cães da vizinhança latindo sem parar, o dia inteiro, quase entrando pela noite. Lá pelo final da tarde, encontraram, nas pedras à beira do rio, uma mocinha assassinada, nua, estuprada. Por óbvio, começaram a dizer que, por isso, os cães estavam tão nervosos - vejam, eles sabiam daquilo! -, e só se aquietaram quando o corpo foi encontrado.

No dia seguinte, quando um criador de cavalos dirigia-se calmamente à barbearia, os cães avançaram sobre ele e o atacaram ferozmente, e se fizeram acompanhar do latido de todos os outros do lugar. Foi o suficiente.

Durante a investigação, ficou claro que o criador de cavalos não tinha álibi algum capaz de inocentá-lo da acusação de estupro e assassinato de uma garota de 13 anos. Vieram policiais da capital e o caso tomou forma. Foi ele. Acabou confessando.

Daquele dia em diante, todos passaram a temer os cães. Imagine: qualquer deslize, um leve adultério, um passar de perna no sócio, ou simplesmente um pensamento maldoso qualquer. Por via das dúvidas, melhor não ter cães. E, num intervalo de pouco mais de uma mês, não havia um único cão no lugar. Quem não teve coragem de dar fim ao seu próprio animal, fora ajudado ou coagido pelo vizinho. Quando aparecia um cão perdido, um pobre cão vagabundo e sem dono, não faltava quem se dispusesse a  empunhar uma espingarda.

x x x

Dois anos após aquele incidente, outro tornou a acontecer. Uma mulher fora encontrada morta à beira do rio, nua e estuprada. E depois outra. Três ao todo, uma por semana. E aquela onda de assassinatos veio sem aviso prévio qualquer, sem o latido dos cães - não havia cães -, sem pistas, apenas o falatório caótico do povaréu de sobre quem poderia ser, pois o criador de cavalos estava bem preso numa penitenciária estadual. Vieram mais uma vez os policiais da capital, e depois de um tempo eles voltaram, sem nada a entregar aos moradores da localidade. Não demorou muito, talvez umas cinco semanas da última mulher jovem assassinada, uma velha solitária foi encontrada com o coração fora do peito. Na melhor das hipóteses, havia um assassino sádico à solta, e pior, sem nenhum cão no seu encalço.

Um grupo de moradores apressados tomou a iniciativa e começou a encher a cidade de cães, criaram uma associação para receber donativos e alimentá-los. Criou-se uma comissão para administrar as aquisições e transferências para as residências. Qualquer um que não desejasse ter um cão em em casa era encarado como um cidadão suspeito. Fizeram uma lista. Mesmo aqueles que jamais tiveram qualquer afeição por cachorros ou habilidade no trato com eles eram forçados a ter um, talvez dois. As autoridades deixaram acontecer. E a cidade foi novamente se enchendo de cães, das mais diversas raças e tamanhos. O cão era o documento de boa vontade, de cidadania e  de presunção de inocência. Desenvolveu-se se o argumento quase teológico de que um bom cachorro de latido forte em casa substituía a obrigação de ir ao culto aos domingos.  Em três anos e meio, a cidade tinha quatro vezes mais cachorros do que gente. E, por coincidência ou não, por elo de causa e consequência ou não, os crimes simplesmente não mais aconteceram, só mortes naturais.

E, quando chove, e as nuvens encobrem o céu por horas, nuvens de chumbo escondendo o sol, os cães a ladrarem quase em uníssono, os moradores só se dão por satisfeitos quando a ronda varre os arredores, as margens do rio, as fazendas e os sítios, os galpões de fábrica, os lugares abandonados, o cemitério, e todas as residências, até voltar sem notícia de vítimas. Quando o sol brilha no alto, os cães se aquietam e dormem. E a vida volta a transcorrer em sua normalidade.

Marco Antonio, 2013.

10.11.13

BÊNÇÃO




Chovia. O sinal fechou. Na faixa de pedestres, ela deu o passo para atravessar, e se  foi, com aquele seu jeito bem bacana e sensual de caminhar, somente ela na faixa, balançando levemente os quadris, enquanto olhava fixamente para o namorado que a esperava do outro lado da rua. Ela não viu que vinha de lá um carro veloz  no asfalto molhado e liso, e só ouviu o som agudo do atrito dos freios. Não deu tempo de parar, o veículo foi diretamente em suas pernas e a jogou para cima e para o lado. O carro parou lá adiante. Ela ficou caída no chão molhado, desacordada, o sangue no rosto e escorrendo no chão molhado.

O motorista abriu a porta do carro e não teve coragem de ir vê-la. O namorado gritou e correu para socorrê-la, e outras muitas pessoas apareceram imediatamente depois, um monte de gente, pessoas saídas dos mais diversos lugares, parecendo surgir do nada. Em seguida, a polícia e a ambulância. Um policial perguntou pelo motorista, e apontaram para um homem jovem recostado no carro verde no meio da pista e de cabeça baixa. Dois fardados o abordaram, e um deles começou a fazer anotações, mas o motorista nem se mexeu, respondia às perguntas com a voz baixa, sem nem mesmo levantar um braço. A chuva continuava caindo e ele estava todo encharcado. A ambulância logo saiu em disparada, carregando a vítima. A multidão foi dispersando aos poucos, ao tempo que a polícia tirava fotografias do local e do veículo, o qual também foi retirado para liberação do trânsito. No início, como é comum nesses casos, o trânsito rodou lentamente, os motoristas tentando entender a causa do congestionamento, olhares curiosos. Depois, fluiu no ritmo normal. E a chuva foi diminuindo, até que passou de todo. No dia seguinte, saiu no jornal que a moça havia sofrido um traumatismo craniano e acabou não resistindo.

O inverno passou. Veio o processo contra o motorista, depois o verão. A cidade esquentou muito aquele verão. Mas depois, um outro inverno, e o tempo foi passando. O motorista pagou com uns trabalhos sociais numa creche na periferia, e foi liberado. Sem antecedentes, tinha emprego certo, era trabalhador, competente, filho único adorado pela mãe, e frequentava o templo aos domingos; não bebia, não fumava, tinha muitos amigos e bastante camaradas das partidas de futebol das quintas à noite. Jogava no gol, e pegava bem.  Na creche, conheceu e passou a namorar uma moça bem bonita. Sandra.

Três anos depois, eles casaram. Tiveram um filho e, após um ano, uma filha. E a vida foi seguindo sem paradas. Ele saiu do emprego e botou um negócio próprio e, tão logo a coisa se equilibrou, construíram uma casa bonita, compraram uma pequena casa de praia, para onde iam quase todos os finais de semana com as crianças. Ela era alta, sob um rosto largo e bonito, pele morena, costumava criar os cabelos negros à altura do ombros, e suas pernas eram longas e bem feitas; os seios, pequenos; e um jeito afável de lidar. Ele a amava, e pensava nela como uma bênção de Deus.

Prosperaram muito e continuamente. Chegaram àquele padrão de vida que se confunde com a riqueza, enquanto as crianças cresciam saudáveis e estudavam em boas escolas. Até que ficaram adultas e chegaram à idade de também construírem suas famílias. Depois vieram os netos.

Formavam um casal admirado no seu meio, um exemplo para os demais, sempre convidados para aniversários, batizados, casamentos e festas. Tudo em suas vidas dava-se numa sequência de bons ventos, sem contratempos, numa escalada contínua de passos certeiros, decisões felizes, consequências no espectro do previsível e do esperado. Em nenhum momento a sorte os abandonou, nada veio de ruim de verdade,  nem mesmo aqueles soluços do acaso e que podem recair sobre qualquer vivente, a exemplo de pequenas ou grandes tragédias pessoais ou familiares,  doenças mais ou menos preocupantes. Nenhum infortúnio ou arrependimento os afligia. Tudo fluiu em suas vidas como se num barco seguro em mar tranquilo, à mercê da brisa soprada pelo Deus sempre bom. Nada de Sua Ira chegou a afetá-los material ou espiritualmente. Até mesmo a morte da mãe dele, já muito velhinha e frágil, não fugiu ao plano de total normalidade, de como as coisas devem ser - a morte para os velhos -, tudo no seu devido tempo e na sua hora certa.

Na velhice, ele veio a temer ficar só. Que sua amada esposa fosse antes dele. Imaginava a morte dela como um fardo demasiadamente pesado a ser suportado.  Em todas as noites, orava para que primeiro fosse ele a ser levado. Fazia disso o seu único e modesto pedido ao Senhor.

Até que veio o dia, felizmente, o dele, como uma dádiva a mais, dentre tantas que jorraram generosamente em seus anos de vida juntos. Já estava bem idoso, embora forte, sem estar sofrendo de nenhuma doença, tanto que ainda trabalhava na empresa, bem tocada agora pelos filhos. Chegou sem dor, sem desconforto ou angústia, sem aviso algum, nem mesmo uma ponta daquela agonia do momento em que nos separamos definitivamente e somos arrancados de nós mesmos.

Marco Antonio, 2013.

7.11.13

NÃO VÁ LÁ.



 
O que há naquele lugar? Só os cães vagabundos da rua se aproximam, e depois voltam assustados, numa correria sem rumo. Um deles deu direto com a cabeça num poste e levantou com as pernas moles. Casas abandonadas, gente estranha, um lugarejo fantasma ou habitado por quem sabe lá o quê?

O que há naquele lugar?

A vista não alcança. Tem o cercado, depois um matagal espesso, um emaranhado de mato grosso e logo seguido de um rochedo elevado que impede a visão mais ao longe. As crianças são, desde cedo, ensinadas a nunca se aproximarem do cercado. Os pais mais severos e cuidadosos obrigam-nas a nem mesmo olhar para aqueles lados de nossa pequena cidade. Mas sabe como são as crianças.... Elas olham, esticam a visão ao máximo, e ficam a imaginar coisas. E, nas noites,  os sonhos as alcançam inertes. Mas não somente as crianças. Todos são acometidos, embora ninguém comente por aí. Tabu, motivo de vergonha até.

Quando um de nós sai de casa pela manhã com aquele semblante envergado, os olhos pra baixo, passos lentos e indecisos, de pouca conversa, evitando os demais - é sinal de que, em sonho, passou pelo cercado , ou por lá a sua alma vagou, perdida. Em respeito, ninguém aborda ou pergunta, deixam o desafortunado passar o dia tentando, sozinho e tentando esquecer.

Em alguns casos, o pesadelo acomete os dois do casal, e ambos acordam um evitando o outro. Um sai pela porta da frente; o outro, pelos fundos. E passam até mais de um dia sem voltar pra casa. Quando um casal sai de casa, ainda bem cedo, o olhar perdido, parecendo duas almas estropiadas, os vizinhos tratam logo de cuidar dos filhos deles. E dão comida, banho, levam pra escola, até que tudo passe.

Hoje, bem cedo, quem saiu de casa, e  de um jeito atabalhoado, sem nem trocar de roupa, ainda vestida como se fosse ir dormir, foi a mulher do pastor. Aproximaram-se dela apenas para jogarem-lhe no corpo um cobertor, e a pobre andou perdida pelo estrada de terra o dia inteiro, e só voltou no meio da noite. Logo ela, a mulher do pastor! Não teve culto. O marido ficou em casa a cuidar da família, com certeza  preparando comida e cuidando dos cinco filhos pequenos.

Na semana passada, foi o dono da mercearia. Antes dele, a mãe de um aleijado que pede esmola na porta da Igreja. Há dois meses, e todos lembram bem desse caso, o padre saiu da casa paroquial sem a usual batina, de ceroulas, os cabelos finos de velho desgrenhados, sem camisa. Decalço.

Por sorte, nunca tive esses sonhos, apenas imagino como podem sê-los. A minha mulher diz a mesma coisa, embora eu saiba não ser verdade. Certa vez, acordei bem cedo naquele dia, e ela não estava mais na cama. Encontrei-a do lado de fora - e era uma manhã bem fria, o sereno encobrindo a vegetação  -, ela estava sentada num banquinho, encurvada debaixo de uma árvore no quintal. Chorava feito uma criança. Quando percebi aquilo, me afastei. Mas ela reagiu, e disse que estava apenas com saudade da mãe que havia morrido um ano antes. Eu fingi acreditar. Mas passou o dia com o olhar perdido, sem querer falar, ou então emitia uns lamentos que eu não entendia direito a razão e a causa, e sem disposição para fazer nada, nem trocou de roupa. Mas passou, foi passando aos poucos. 

Mesmo assim, já depois de um bom tempo, quando eu a observo, ela está com o pensamento absorto. Então é assim que eu sei que esteve lá.

Marco Antonio, 2013.