22.1.17

PERMANÊNCIA



"Você nunca está só"  - Hubmann.

Pediu uma bebida e recostou-se em um balcão recuado. Minutos depois, ela chegou. Ela e mais três amigas. Chamou-lhe a atenção o azul do vestido e o verde dos olhos. Das quatro moças, somente ela sorria; e, mesmo sob o som alto da música que tocava bem ritmada, dava para ouvir a risada aberta e ampla que dela vinha. Passado um quarto de hora, ela não parecia tê-lo notado de modo algum, mesmo quando seus olhos abarcavam o balcão onde ele se debruçara.

Depois foram só pensamentos.

Começou quando ele, ao entrar numa livraria, pegou um livro e mirou a capa, o título e o nome do autor. Em seguida, abriu-o numa página interna e, ainda no primeiro parágrafo, imaginou o que ela pensaria sobre o que estava escrito ali na folha aberta. Após o que, comprou o volume e o leu lentamente, intercalando frases e pensamentos, um processo vagaroso e constante de breves leituras e longas paradas. Não aquele pensamento reflexivo sobre o que se lê, ou a refutação da ideia exposta ou ainda a busca de alguma correlação com a realidade e com outras obras lidas. Um diálogo, não com o autor, mas com um segundo leitor imaginário a ler em paralelo as mesmas palavras, seguindo a mesma marcação das vírgulas e o ritmo das frases, uma após a outra, páginas após páginas, até o final. No fim de tudo, a certeza de que ambos haviam lido e comentado aquele livro singular.

Mas não parando por aí. Também muitos outros, por meses, uma variedade de autores, músicas, compositores, obras de arte, experiências as mais diversas, desde as meramente intuitivas e espirituais, indo até os desdobramentos de natureza religiosa, passando pelas percepções visuais, por um cabedal de viagens, amizades, relações pessoais e amorosas, sentimentos os mais diversos, sonhos, mentiras, frustrações e insucessos, alegrias e os pequenos momentos doces de vida.

Não foi sobrando sequer um pequeno espaço onde houvesse somente ele e sua alma única neste mundo. Nada daquele isolamento próprio que recai sobre cada um de nós desde o nascimento. Nem resquícios da solidão particular à todo ser humano jogado no seio da Criação. Ao seu lado, sempre presente aquela mulher de azul, olhos verdes e sorriso largo. Sempre acompanhado, antes mesmo do raiar do dia, desde o sono mais profundo e confuso das noites pesadas; desde a manhã do dia anterior;  desde muitos dias anteriores.

Estava à beira de, por nunca estar a sós consigo, isolar-se de tudo o mais.

Até o dia em que a viu novamente e de verdade. Foi quando virou o rosto na rua movimentada. O sinal lá adiante fechou -  e lá estava ela atravessando sozinha a larga avenida na faixa de pedestres, somente ela, como naqueles filmes em que se pretende marcar e alongar uma breve cena.

O momento transcorreu em câmera lenta -  pesado em seu ritmo, longo e denso em sua duração. O vento forte batia no vestido solto, não o azul da festa, mas um de várias cores alegres e misturadas em desenhos geométricos. Soprava em curtas rajadas nos cabelos negros pesados à altura dos ombros. Por detrás da cena, uma fila de carros alinhados na faixa, todos parados, um ao lado do outro, os faróis acesos, luzes intensas, os motores em baixa rotação fazendo aquele zumbido grave e constante de potência contida, e os motoristas paralisados ao volante na longa espera, enquanto ela passava, tendo para isso todo tempo que restasse neste mundo.

Quando já perto do outro lado rua, ela virou o rosto para ele;  e o mirou por um instante breve e limitado, mostrando que o  reconhecia, desejando que a visse. E, pela primeira vez, ele pode ter para si o belo sorriso a ele dirigido, agora a sua alma  liberta.

Marco Antonio.

19.1.17

QUEM MATA OS CÃES?

quinta-feira, 19 de janeiro de 2017

QUEM MATA OS CÃES?


Ela dobrou a esquina e seguiu em direção à mercearia. Levava uma sacola plástica para comprar produtos de cozinha, pouca coisa, apenas o suficiente para fazer o almoço do dia. Era ainda cedo, umas oito e quinze da manhã, e o sol estava frio naqueles dias de inverno. Veio um vento de frente e ela segurou a barra da saia e foi andando de um jeito meio esquisito, uma das mãos à altura dos joelhos, para manter a barra da saia abaixada. 

Foi quando deparou-se com um cão atravessado na calçada. Ela deu um pulo para o lado, evitando pisar no animal morto. Ele tinha os olhos e as mandíbulas abertas, mostrava os caninos. Na cabeça, uma marca de sangue seco no pelo, e o que parecia ser um ferimento provocado pelo impacto de algo pesado. Provavelmente tratava-se de um animal de rua, vítima de ataque no meio da noite, coisa que vinha acontecendo com frequência de uns dias pra cá. Ninguém reclamaria por ele, por certo.

Ela seguiu e, cinquenta metros à frente, entrou na mercearia. Estava vazia de clientes, apenas o proprietário arrumando a prateleira de produtos de higiene. Deu um bom-dia e recebeu um sorriso de volta. Pegou uma lata de molho de tomate, uma outra de ervilhas, uma garrafinha de vinagre, um pacotinho disso e outro daquilo, e foi em direção ao balcão de folhas verdes. Tendo comprado tudo o que desejava, dirigiu-se ao caixa. O proprietário foi atendê-la e deu-lhe um sorriso, limpando as mãos uma na outra. Ela falou sobre o cão morto, perguntou se ele havia visto.

"Não" - ele disse - "Mas tem acontecido de matarem cães de um tempo pra cá."

"E  ninguém descobre quem está fazendo isso?" - ela pegou o dinheiro na bolsa, pagou, e recebeu o troco.

"Tem gente que imita. Podem ser vários, gente louca que mata cães, grupos de malucos. Tem gente assim. Pode ser coisa da internet, gente maluca e desocupada da internet que se junta pra matar cães." - ele olhou pra ela após dizer essas palavras, e mirou-a fixamente, até deixá-la desconcertada. Então pegou o dinheiro e pôs na gaveta, fechou a caixa-registradora com uma chave pequena, fez a volta em torno do balcão e foi saindo. Ela o acompanhou.

O dono da mercearia tomou a dianteira. Ela o seguiu e, de longe, o viu parar ao lado do animal e se abaixar por uns segundos e depois ficar novamente ereto, permanecendo ali por pouco tempo. Quando passaram um pelo outro, ele já de volta, o dono da mercearia a olhou fixamente mais uma vez, e prometeu ligar para o pessoal da prefeitura, mas afirmando não ter lembranças de ter visto aquele cão pelas redondezas.

Ela caminhou sem interrupção até chegar à sua residência. Não sem antes passar por um outro cão morto e, ao lado dele, ajoelhada, uma velha senhora chorando. Não parou, fez como se não tivesse visto. Apressou o passo. Chegou em casa com a respiração ofegante. Colocou a sacola de  compras na mesa da cozinha e deitou-se no sofá da sala.

Quando a respiração acalmou, já havia caído no sono.


* * *

Lá pelas doze e meia, o marido chegou do trabalho e a encontrou dormindo no sofá. Ela não havia feito o almoço e nem nada, e a casa estava do mesmo jeito de quando ele havia saído para trabalhar.

Quando ela abriu os olhos, desorientada ainda, sonolenta, ele a esbofeteou. Ele o fez mais uma vez, quando ela tentou levantar do sofá. Tudo muito rápido. Não deu pra pensar e nem para entender nada, só colocar instintivamente os braços como proteção. A mulher cambaleou depois de chocar-se e bater a cabeça contra a parede, tentando em vão correr dali, enquanto o sangue escorria-lhe, um fio saindo do canto da boca.

Então ele aproximou-se dela, mais violento e rápido, decidido, o punho fechado, e a esmurrou mais vezes, batendo forte e sem parar. Em seguida, afastando-se menos que um passo, tomou uma pequena distância e chutou-lhe a barriga. Ela finalmente desmoronou de dor. Ele deu-lhe um chute na cabeça. E a pancada fez um som surdo. Ela tomou uma lufada repentina de ar, emitiu um ruído estranho e jogou sangue pra fora, muito sangue. O peito arfava, indo e voltando, indo e voltando.

A mulher tentou puxar ar, fez um ruído forte, e parou de vez.

Então ele saiu. Entrou no carro que estava estacionado em frente da casa. Mas não deu partida na ignição. Ficou parado, as mãos ainda manchadas de sangue e repousadas sobre o volante, como que esperando alguém chegar, ou sei lá o quê na cabeça dele, as pernas inertes, os braços quietos, o sol entrando pelo pára-brisas. E ficou ali. Era bom, morno, pois lá fora estava frio. E dava para olhar serenamente as nuvens de chuva se aproximando.

Marco Antonio, janeiro 2017.

12.1.17

GRAÇA

Chovia. O sinal fechou. Na faixa de pedestres, ela deu o passo para atravessar, e se  foi, com aquele seu jeito bem bacana e sensual de caminhar, somente ela na faixa, balançando levemente os quadris, enquanto olhava fixamente para o namorado que a esperava do outro lado da rua. Ela não viu que vinha de lá um carro veloz  no asfalto molhado e liso, e só ouviu o som agudo do atrito. Não deu tempo de parar, o veículo foi diretamente em suas pernas e a jogou para cima e para o lado. O carro parou lá adiante. Ela ficou caída no chão molhado, desacordada, o sangue no rosto e escorrendo.

O motorista abriu a porta do carro e não teve coragem de ir vê-la. O namorado gritou e correu para socorrê-la, e outras muitas pessoas apareceram imediatamente depois, um monte de gente, pessoas saídas dos mais diversos lugares parecendo surgir do nada. Em seguida, a polícia e a ambulância.

Um policial perguntou pelo motorista, apontaram para um homem jovem recostado no carro verde no meio da pista e de cabeça baixa. Dois fardados o abordaram, um deles começou a fazer anotações, mas o motorista nem se mexeu, respondia às perguntas em voz baixa, sem nem mesmo levantar um braço. A chuva continuava caindo e ele estava todo encharcado. A ambulância logo saiu em disparada. A multidão foi dispersando aos poucos, ao tempo que a polícia tirava fotografias do local e do veículo, o qual também foi retirado para liberação do trânsito. No início, como é comum nesses casos, o trânsito rodou lentamente, os motoristas tentando entender a causa do congestionamento, olhares curiosos. Depois, fluiu no ritmo normal. E a chuva foi diminuindo, até que passou de todo. No dia seguinte, saiu no jornal que a moça havia sofrido um traumatismo craniano e acabou não resistindo.

O inverno se foi. Veio o processo contra o motorista, depois o verão. A cidade esquentou muito naquele verão. Mas depois, um outro inverno, e o tempo foi passando. O motorista pagou com uns trabalhos sociais numa creche na periferia. Sem antecedentes, tinha emprego certo, era trabalhador, filho único adorado pela mãe. Não bebia muito, tinha muitos amigos e bastante camaradas das partidas de futebol das quintas à noite.  Na creche, conheceu e passou a namorar uma moça bem bonita. Sandra.

Três anos depois, casaram. Tiveram um filho e, após um ano, uma filha. E a vida foi seguindo. Ele saiu do emprego e botou um negócio próprio e, tão logo a coisa se equilibrou, construíram uma casa bonita. Mais adiante, compraram uma pequena casa de praia, para aonde iam quase todos os finais de semana com as crianças.

Ela era alta, sob um rosto largo e bonito; pele morena, costumava criar os cabelos negros à altura do ombros. E tinha um jeito afável de lidar. Ele a amava e pensava nela como uma bênção.

Prosperaram muito e continuamente. Chegaram àquele padrão que se confunde com a riqueza, enquanto as crianças cresciam saudáveis e estudavam em boas escolas. Até que ficaram adultas e chegaram à idade de também construírem suas famílias. Depois vieram os netos.

Formavam um casal admirado no seu meio, um exemplo para os demais, sempre convidados para aniversários, batizados, casamentos e festas. Tudo em suas vidas dava-se numa sequência de bons ventos, sem contratempos, numa escalada contínua de passos certeiros, decisões felizes, consequências no espectro do previsível e do esperado. Em nenhum momento a sorte os abandonou, nada veio de ruim de verdade,  nem mesmo aqueles soluços do acaso e que podem recair sobre qualquer vivente, a exemplo de tragédias pessoais ou familiares. Nenhum infortúnio os afligiu. Tudo fluiu em suas vidas como se num barco seguro em mar tranquilo à mercê da brisa soprada pelo bom Deus. Nada de Sua Ira chegou a afetá-los material ou espiritualmente. Até mesmo a morte da mãe dele, já muito velhinha e frágil, não fugiu ao plano de normalidade de como as coisas devem ser - a morte para os velhos -, tudo no seu devido tempo e na sua hora certa.

Temia apenas perdê-la.

Até que veio o dia. Para ele. Chegou sem dor, sem desconforto ou angústia, sem aviso algum, nem mesmo uma ponta daquela agonia do momento em que nos separamos definitivamente do que somos e a alma nos é arrancada.

Marco Antônio, janeiro de 2017