11.12.12

O LAGO DO DESAPONTAMENTO



Chegamos cedo. Abrimos portas e janelas, e retiramos os lençóis que cobriam os móveis. No final da tarde, tudo feito - casa varrida, banheiro lavado, malas desarrumadas, janelas e portas abertas -, da grande janela de nosso quarto no primeiro andar, contemplamos a imensa lâmina azul do lago, calma e iluminada, a se perder no horizonte.

Soprava um vento leve e frio, trazendo o cheiro das árvores próximas; e o cansaço fazia-nos deitar os olhos sobre a paisagem. Parecia outro mundo que não este.

No dia seguinte, nadamos um pouco e caminhamos sobre as pedras negras. Antes do meio-dia, já de volta e sentados na varanda, tomamos cerveja. Minha mulher preparou alguma coisa rápida e almoçamos, antes de ir deitar. A tarde passou.

Perto do anoitecer, os outros chegaram.

Hermes e sua mulher, Clara, saíram para um passeio sob o luar. Liguei o som. Dali, da varanda, dava pra ver os vultos do casal amigo às margens do lago. Eles pareciam brincar como duas crianças, um correndo do outro, um jogo infantil de corre-e-pega. A música tocava, indo embora, nem chegava perto deles, enquanto a minha mulher preparava o jantar.

- Eu tinha certeza de que iria colocar essa música, meu bem, quando viesse pra cá. - minha mulher veio me dizer, sorrindo, numa rápida saída da cozinha. -  É muito estranha, viu?. Mas, Deus do céu, até que combina bem com esse lugar. Eu não viveria aqui por muito tempo, sabia? Certo que é uma  boa casa. É o lago, meu bem, muita água.  Deus!, quanta água!. Incomoda ter algo tão grande por perto...

Ela Tinha um belo sorriso, cabelos negros e longos. Quase sempre parecia serena e doce. Nunca tivemos filhos. Ela não era dali, viera de longe, de uma região bem diferente. Mas dava-se bem com todos e conquistara especialmente a simpatia do casal que estávamos a hospedar naquele final de semana prolongado.

- Que coisa horrível! - disse Hermes sobre a música, em tom de galhofa, subindo as escadas que dava acesso à varanda. - Não temos nada mais alegre pra tocar, meu amigo? Algo pra dançar?

Clara o recriminou. O vestido molhado deixava ver as formas de seu corpo, mesmo ela passando rápido, quase correndo. Hermes pegou uma cerveja e sentou-se ao meu lado. Começou a bater as mão nas pernas, firme e quase festivo, acompanhando o ritmo da faixa seguinte que começara a tocar.

- Isso é bem melhor - disse ele. Hermes alegrou-se, tomando um gole, balançando o corpo ao som do saxofone. - Que lago, meu amigo... - falou, espichando-se na cadeira. E ficamos em silêncio, enquanto o ritmo da orquestra tomava o ambiente.


No outro dia, fomos os quatro ao lago. Clara deixava antever um corpo muito bonito desenhado sob o maiô vermelho. Minha mulher usava um de cor verde. Lá adiante,  depois de uma boa caminhada, começou a chover. Estávamos um pouco longe de casa. Foi uma coisa de uma hora pra outra, uma chuva torrencial, raios e trovões. Distraídos, não percebemos a formação de nuvens. Corremos para nos abrigar nas árvores que margeavam uma pequena faixa de praia. Aquilo parecia não ter fim. A chuva batia forte sobre a copa das árvores e na superfície do lago, produzindo um som constante, quebrado aqui e ali pelo bater dos trovões intensos. Clara começou a chorar. Tomada de pavor, ela revelou que, antes da viagem, havia pressentido algo e, por isso, preferiria ter ficado em seu apartamento na cidade.

 - Você sabe que eu não queria vir - disse para o marido, irritada.

Minha mulher cruzou os braços em volta do peito, apertando os seios. Hermes correu  para o lago e mergulhou. Clara gritou. Eu a segurei. Chamei por Hermes, mas o som da tempestade enchia o ar. Minha mulher permanecia do mesmo jeito, braços apertados contra o peito, tremendo de frio, enquanto eu segurava Clara, evitando que ela fosse para o lago. Aquilo durou um pouco, um ou dois minutos, e todos ficamos preocupados e apreensivos, sem nada poder fazer. Logo depois, lá estava ele, vindo em nossa direção, balançando o corpo, sorrindo, fazendo caretas e gestos infantis.

- Seu idiota - Clara gritou. Mas ele não ouviu o que ela disse, pois chovia muito forte ainda. Eu a soltei e abracei a minha mulher.

Quando começamos a voltar pra casa, após a chuva ter passado, o Sol ainda não havia aparecido de todo. O céu estava encoberto por nuvens de chumbo. Clara andava na frente. Hermes puxou conversa. Minha mulher soltou a minha mão e foi fazer companhia à amiga.

Tanto Clara quanto Hermes eram mais novos do que nós, uns sete anos. Foi aí que ele disse que estavam em processo de separação. Eu o olhei de relance e disse apenas que estava surpreso. E mantive o passo.

- Você a acha bonita, não é? Eu sei disso - ele sorriu. - Mas você não a conhece, viu? As pessoas nunca são como se apresentam - filosofou -, e Clara esconde muito mais do que o resto de nós. Pode acreditar em mim, meu amigo. Ela esconde.
- Você não pensa que está exagerando, Hermes? Pare de falar assim de sua mulher...
- Tente conhecê-la então. Faça isso... Estamos nos separando, ora essa! Depois você me diz o que achou, certo?

As duas começaram a correr, e ficamos bem pra trás. Quando chegamos à casa, elas já estavam de roupa trocada, sentadas na varanda, tomando alguma bebida forte. Passei, meio que correndo, para tomar um banho, e evitei olhar para Clara. Hermes pegou uma lata de cerveja e juntou-se às duas. Quando voltei, estranhei o fato de estarem os três a conversar alegremente sobre passos de dança. Hermes puxou a mulher pelo braço e começou a fazer uma demonstração sobre passos de bolero. Clara parecia estar bem, recuperada do susto, jogava seu corpo contra o do marido, ambos bastante sorridentes. Minha mulher entoava uma canção, batucando no braço da poltrona. Hermes olhou pra mim e sorriu, nem mais que num breve instante, e logo voltou-se para elas.


X X X



Dois anos depois, eu e Clara voltamos para a casa do lago, já casados. Ela estava com a barriga crescendo, de cinco meses. Dois anos sem ninguém havia deixado a casa com um aspecto de abandono, e não foi fácil limpar tudo aquilo, lavar o banheiro, varrer o chão, limpar a cozinha. O cheiro não era muito bom, mas Clara havia insistido muito para virmos, e estava disposta a limpar tudo e assumir seu lugar de direito. Não fizemos outra coisa durante três dias a não ser trabalhar para deixar o lugar com um aspecto aceitável. Clara tinha um jeito bem peculiar de fazer as coisas, cantando e balançando levemente o corpo, pra lá e pra cá. Era engraçado vê-la varrendo a casa daquele jeito alegre, com a barriga saliente.

Tudo feito, tudo limpo, numa tarde de sol, da grande janela do andar de cima, contemplamos o céu azul e claro sobre o lago, banhados por uma brisa constante e morna. E, de lá do andar de baixo vinha o som melodioso do segundo movimento da Nona Sinfonia de Philip Glass. Barcos a vela de cores as mais diferentes singravam a água pra lá e pra cá, como uma festa de brinquedos. Era Fim de Ano e todos pareciam alegres e esperançosos quanto ao futuro.

 A nossa casa ficava num elevado, do qual podia-se ver tudo lá embaixo, as outras casas, crianças brincando à beira d'água, mulheres jovens estendidas sobre toalhas coloridas, casais caminhando de mãos dadas, rapazes fazendo disputa de nado. Clara perguntou se  nosso filho, quando adulto e já casado, visitaria aquele lugar com a família, nossa nora e nossos netos. Claro que sim, respondi.

- Meus pais visitavam o lago nas férias escolares anuais, construíram e amaram esta casa. Deve ser passada para as gerações seguintes, assim como nós aqui neste momento. - eu disse pra ela.

Ela falou, bem baixinho, uma coisa que não deu pra entender. E afastou-se.

Como se num passe de mágica, interrompida a brisa, não havia mais barcos no lago, nem crianças correndo, nem casais enamorados, nem mulheres estendendo seus corpos brancos na areia escura. Nem o reflexo do sol na água. E as ondas batiam fortes nas pedras próximas. Do sul, uma nuvem escura trazia um vento frio e em rajadas fortes. Como num piscar, o céu estava encoberto, e veio a chuva, forte e estrondosa. Anoiteceu. E não estávamos mais lá.

Marco Antonio, Dezembro de 2012.