18.8.16

TERRA PRIMATA

Chegou ao Netflix o filme Terra Primata (1974), a única obra de ficção científica do diretor Ted Kholman, o mesmo do famoso Canção do Oeste. A história se passa ali mesmo, no ano em que o filme foi rodado, quando a humanidade faz seu primeiro contato com uma espécie alienígena. Eles, os extraterrestres, chegam numa nave gigantesca e de formato estranho. Não são humanóides. E Ted Kholman não os mostra em momento algum. Os visitantes permanecem no interior da nave a orbitar o planeta, e tentam se comunicar através de sinais de rádio. As tentativas são em grande parte frustrantes, dada a dificuldade de se conseguir decifrar as mensagens enviadas por uma civilização totalmente distinta da nossa, apesar do enorme esforço da comunidade científica mundial em decodificar os sinais.
Mas o enredo não fica só nisso. Um pouco antes da chegada dos extraterrestres, o mundo já havia entrado numa crise econômica sem precedentes, ruína do sistema financeiro, crash das bolsas, queda brutal do consumo, desemprego, colapso da indústria, desabastecimento, saques, fome, caos.
Não podemos esquecer que, em 1974, a União Soviética ainda existia. Os russos posicionam tropas e tanques na fronteira com a Alemanha, com o argumento de que precisam proteger sua esfera de influência de uma eventual invasão daqueles que fogem da fome no Ocidente. Em resposta, a OTAN coloca suas bases de mísseis em estado de alerta máximo.
A chegada dos alienígenas acrescenta mais instabilidade ao cenário. Não se pode descartar a possibilidade de invasão. Mas, por outro lado, acima da atmosfera, a nave gigantesca permanece pacificamente enviando continuamente sinais, apenas sinais que nos são obscuros e incompreensíveis, quase beirando o ruído.
A personagem principal é interpretada por Caroline Peterson, a musa dos filmes de Kholman. Assim como em Canção do Oeste, ela é uma dona de casa, e assiste a tudo pela TV, não ousando sair. Lá fora é caos e violência. O marido saiu para tentar comprar mantimentos e ainda não voltou. E nem voltará. Kholman faz várias tomadas em "close" do belo rosto de Peterson, seus olhos e cabelos negros. As cenas externas de convulsão nas ruas são magistrais. Tem aquela famosa de uma mulher sendo violentada num supermercado, as prateleiras totalmente vazias.
O filme vai se tornando, passo a passo, cada vez mais estreito em sua narrativa, e minimalista na forma. Se, no início, se desenrola amplo com a chegada da nave alienígena em meio a um caos global de proporções bíblicas, vai aos poucos descendo para os detalhes e dramas pessoais. Os últimos 20 minutos são de tomadas internas no interior da casa de Samantha (Caroline Peterson), ela e seu filhinho de 3 anos, ambos diante da TV à espera do marido que não voltará. A TV alterna imagens da nave, fotografias tiradas de telescópios e satélites, declarações de autoridades civis e comandantes militares, apelos de líderes religiosos, multidões em fuga, choques brutais e sangrentos entre forças da ordem e a turba nas ruas.
Em determinado momento, a TV perde o sinal, só chuvisco. E permanece ligada por um tempo, só mostrando chuviscos, mãe e filho diante dela, na esperança de que volte a transmitir notícias sobre o mundo lá fora. Em seguida, falta energia. Na escuridão, a criança começa a chorar de fome e medo. Samantha cantarola uma canção de ninar. Ela vai até a janela, na tentativa de mostrar a nave para seu filho. E o filme termina nesse ponto exato, a câmera mostrando o céu negro, vazio, e sem estrelas; e, em seguida, mudando para o belo rosto de Caroline Peterson, em uma de suas melhores interpretações, só perdendo para o papel na pele de uma personagem de mesmo nome em Canção do Oeste.
Em Canção do Oeste, Kholman faz as duas ou três muito conhecidas reviravoltas na trama, uma técnica de narrativa integrante dos melhores manuais de cinema. Já aqui, em Terra Primata, temos um contínuo estreitamento do foco de visão. Há quem diga ser uma metáfora sobre o que de fato interessa ao ser humano - o indivíduo lutando pela sua vida, a rotina doméstica, mesmo que lá fora o mundo seja uma confusão total; mesmo que, um pouco acima, uma civilização avançada, um viajante interestelar, esteja tentando nos dizer algo e talvez no tirar do pó.
Eu indico.

Marco Antonio, Agosto 2016.