1.5.14

NO ESCRITÓRIO



Hoje, cedo, vi num jornal da internet que o corpo de uma criança fora encontrado num lixão. Havia uma foto mostrando o ar de desespero dos pais,  e o desamparo dos dois juntos ao corpo e ao lado dos policiais. Nem li a matéria completamente, não deu tempo.

Por volta do meio-dia, um colega de trabalho relatou que um cano d´água estourou em sua rua, "foi um caos total, o jato de água subia uns 10 metros" - ele disse - "e abriu um rombo enorme no asfalto" e, por isso, havia chegado atrasado ao trabalho. Esse meu colega tem uma mulher bonita e uma filhinha de olhos verdes; trabalha duro, talvez chegue a ser chefe do departamento algum dia. Sei desses poucos detalhes porque encontrei a sua esposa e a filhinha numa dessas festas de fim de ano na empresa. Ele pouco fala comigo, mas sei que é esforçado, além de correto e disciplinado. Estranhei ele vir até a minha pessoa para contar a história do cano que partiu em sua rua. Parecia mesmo preocupado, angustiado até.Talvez tenha conversado comigo para justificar o atraso, embora não seja eu o seu chefe e trabalhe "bem longe" do seu setor. Nossa comunicação se dá através do fluxo de informações na rede de computadores da empresa - o emaranhado de solicitações, ordens, análises, aprovações, ações, erros, correções. Nem sei mesmo quem são as pessoas mais próximas desse meu colega no nosso escritório, se  ele pratica algum esporte, não sei qual o seu time do coração ou em qual partido vota. Quase um estranho.

Ao levantar, ele parecia recurvado, apesar dos passos apressados. Eu o observei, enquanto ele se afastava em direção ao banheiro dos homens. Ao chegar em frente ao que parecia o seu destino, desviou-se e tomou outra direção. Tirou os óculos e o colocou novamente no rosto. Em seguida, perdeu-se no corredor e sumiu.

No fim da tarde, já no acabar de um longo expediente, fui chamado à sala do chefe. Ele fez uma introdução longa e pausada. Eu estava muito cansado e torci para acabar logo. Mas ele continuava em sua explanação longa, metódica, analítica e entremeada de exemplos. Em alguns momentos (deu vontade de rir), parecia estar contando meio que ao modo de parábolas bíblicas. Meu chefe é alto e magro, veste-se bem e parece nem mover-se em sua poltrona enquanto fala, lembra uma pedra de mármore lá na cadeira da gerência. Esse meu chefe é casado pela segunda vez, tem duas filhas do primeiro casamento e um garoto do segundo, e ele falou disso tudo em sua narrativa poética e bíblica, quase romanceando sua vida, enquanto eu escutava na cadeira à frente da sua mesa. Um porta-retratos mostrava uma foto dele junto à sua segunda esposa numa praia. Ele pegou esse porta-retratos para melhor mostrar a sua relação com a família, o trabalho e, por mais estranho que pareça, com a própria existência, dando a entender ser ela um pedaço de tudo que há, resultado de leis imutáveis do cosmos. Em meio a isso tudo, citou que um colega nosso havia chegado atrasado, havendo se justificando com o estouro de uma cano da companhia de água da cidade. Então ele disse, pronunciando lentamente as palavras: "Um cano de água..." - e sorriu - "meu Deus, um cano de água!". No final, quando não havia mais luz entrando pela imensa janela às suas costas, ele fez uma pergunta, apontando o dedo para mim:

"O que você fez hoje cedo, antes de vir para o trabalho?"

"Li uma matéria sobre o corpo de uma garota que fora jogado num lixão aqui próximo de nossa cidade." - respondi - "A policia foi chamada e os pais foram levados ao local. Eles pareciam desesperados. Uma imagem muito triste..." -  aproveitei, livrei-me mentalmente da matéria do jornal e fiz uma pergunta direta e sem rodeios, pois já estava exausto:

"O que o senhor pretende dizer para mim, afinal?"

Ele recuou um pouco a poltrona. Apontou para mim novamente e falou: "Ah, você precisa esquecer isso...". E levantou-se. Tirou o paletó que estava estendido na poltrona e o vestiu. Ajeitou o nó da gravata, afastando em seguida a poltrona para trás. Aproveitei e levantei também. Sem mais palavras, fui saindo. Olhei para o meu chefe por apenas dois segundos, no máximo. Deu-me novamente vontade de rir, mas apenas pedi desculpas por estar me retirando. Ele sorriu, e parecia sincero em seu gesto,  estendendo-me o braço para um aperto de mão.

Voltei à minha sala. Quando saí do escritório, não havia mais ninguém. Tive que apagar a luz.

Marco Antonio, 2014.