4.7.09

Eu Não Saberia Dizer ao Certo Como Tudo Começou.


Eu não saberia dizer ao certo como tudo começou. Já passava das três da tarde e fazia um calor desgraçado, o ar seco, o sol batia no rosto e eu tinha que apertar os olhos porque doía muito aquela luz intensa e abundante vinda do alto, da frente e dos lados. No verão, não é fácil viver por aqui. O sangue esquenta, a gente se irrita fácil, os nervos à flor da pele. Um calor desgraçado, de dia e de noite. E aí passa um carro, bem pertinho, raspando a minha roupa e buzinando alto. Um susto enorme. Acho que foi assim que aconteceu.
Quando dei conta, já estava no hospital. Quando acordei, horas depois, disseram que havia sofrido um pequeno derrame. Um braço estava meio largado e eu não lembrava de muita coisa. Lembro da minha mulher ali em pé, abatida, olhos vermelhos, aquele olhar assustado voltado para mim. Fiquei internado por uns dias, fazendo um monte de exames, disso e daquilo, e finalmente voltei para casa. Penso ainda que aquela buzina me deixou assim, e a vida não foi mais a mesma de antes.

Mas, antes disso, houve outra coisa. Devo contar. Foi quando abri aquele bilhete escrito com letra de homem. Ainda não entendo como em um mundo de computadores, e-mails, celulares e mensagens eletrônicas alguém ainda escreve bilhetes para a mulher de um outro homem. “A... Você vai ser minha hoje. Ás 3 horas. No mesmo lugar, ok?. P...”. Fosse uma mensagem de celular, tudo poderia ser diferente. Mas aquele bilhete teve de ser lido.
No mesmo lugar, ok?”. Eu pensei: - Não é a primeira vez. Eles têm um lugar, um lugar deles. Eu deixei o bilhete ali, fechado, do jeito que encontrei, na mesinha ao lado da cama. Deixei acontecer. Eu sabia que as coisas não andavam bem entre nós e não encontrei forças para impedir. “No mesmo lugar, ok?”. Ora, já havia acontecido e pronto. Se não fosse naquele dia, seria em outro. Aliás, já tinha acontecido antes, no mesmo lugar.

Fui para a rua e fiquei por ali, zanzando, sem saber para onde ir, imaginando qual seria “o mesmo lugar”. Foi quando aquele motorista fez o carro passar raspando em mim e buzinou o mais que pôde. Talvez eu estivesse no caminho dele, sei lá, talvez a culpa tenha sido minha. Em certas situações, nunca se sabe de quem é a culpa. O certo é que estou aqui, desse jeito, um braço largado.

Eu poderia ter evitado, bastando não sair de casa, ou ter tomado cuidado ao atravessar a rua, ou não abrir aquele bilhete. Ou talvez, bem antes, muito antes, ter evitado que a vida tivesse tomado o rumo que tomou. Mas não há com se prevenir do imprevisto. Não há como saber qual será a consequência de certas ações e de um gesto, de uma ou outra palavra que a gente fala para alguém. O médico argumentou sobre a minha má alimentação, o sedentarismo, o cigarro que não havia parado de todo. Nada é uma coisa só. Uma coisa junta com outra e você nem sabe por que veio parar onde está. Eu não saberia dizer como tudo começou.

Até então, não havíamos falado no assunto. Afinal, havia mais o que a pedir se eu perguntasse sobre o bilhete? Poderia ser o fim. Ela teria ido embora e eu ficaria sozinho, com um braço largado. Quem iria impedir aquele motorista de buzinar do modo como fez?

Então eu abordei de outra maneira, indagando sobre ela estar com um marido meio aleijado, sendo ela uma mulher ainda bonita, vistosa e atraente. A reação dela foi chorar. Num piscar de olhos, derramou a chorar como uma criança. E eu fiquei olhando, comovido, esperando ela poder falar. Depois eu disse a ela que deixasse pra lá aquela bobagem minha. Mas aí ela começou a falar e a se lamentar. Você sabe como é, quando se quer colocar um mundo inteiro acumulado para fora. A minha mulher começou a contar uma história comprida de infelicidade e de uma vida de desilusão. Conversa de mulher, é verdade... Uma história compridba, mesmo, cheia de detalhes, detalhes vindos de não sei lá de onde, de um passado distante, de um namoradinho do colégio, de quem gostava tanto, quando ainda era uma garota bem nova e cheia de sonhos bonitos. Se ela não contasse, eu não saberia nunca daquele mundo desconhecido que havia dentro dela, das decisões erradas, de ter me conhecido, da infelicidade de não termos um filho. Fiquei ali, parado e olhando para ela, com meu braço largado e solto ao lado da poltrona, ouvindo e sem me mover, apenas ouvindo. Deu vontade de levantar e dar um abraço forte na minha mulher, mas não tive energia.

 Também não toquei no assunto do bilhete. Apenas praguejei, não com certa dose de fingimento, amaldiçoando o calor e a hora em que aquele carro, do qual nem me lembro a cor, passou por mim e buzinou tão alto.
Marco Antonio, 2009.