21.9.14

LIMONADA



A prosa que segue no parágrafo seguinte é apenas uma alusão a um poema de um contista americano de quem gosto de ler, e cujo primeiro livro adquiri em 1994. Raymond Carver. Não há espaço pra falar sobre ele aqui. O título do poema, escrito em estilo livre e moderno, é Limonada, na tradução, pelo menos. O argumento por trás do título é bem interessante, a limonada é um nada num mundo de contingências. Vale a pena ler.

Por volta das oito e meia da amanhã, o tempo ainda frio, saímos para o passeio de domingo. Quando chegamos, o sol iluminava toda a extensão à nossa frente. A minha mulher pegou o nosso garotinho pelo braço e foi logo mostrar o lago. A superfície da água estava plana como um espelho, e refletia o firmamento e suas nuvens. Imenso. O menino alargou o olhar e deteve-se diante da visão da lâmina d´água que perdia-se no horizonte.

- Mamãe! - gritou e agarrou-se ao pescoço dela. Ela o abraçou e conteve de imediato o seu temor.

Embora o resguardasse dos perigos, e temesse por ele em todos os minutos de sua vida, jamais imaginaria que, dentro em pouco, o filho amado estaria sob aquelas águas profundas, bem como jamais poderia saber que o corpo dele jamais seria encontrado.

Às vezes, embora não seja comum, a gente conta uma história assim, já revelando o final. Como um sujeito que chega ao médico e vai mostrando de cara a perna quebrada, e só depois vai dizer como aconteceu. O poema de Carver começa assim também:

"Quando ele veio à minha casa meses atrás para medir as paredes para fazer estantes de livros, Jim Sears não parecia um homem que ia perder seu único filho nas águas agitadas do rio Elwha."

Continuando, aquele era, e ainda é, um lugar muito bonito. Jamais voltei a vê-lo. Água, areia, bares, comida, sol, famílias  e diversão. E dava sempre muita gente. 

No início da manhã, antes das dez, foram chegando os casais e suas crianças. Um monte delas, menores e grandes, numa imensa algazarra. E já se via gente nadando pra lá e pra cá, gritos e pedidos de "cuidado!". As mamães chamando pelos seus, os homens sentados em cadeiras reclináveis, tomando cervejas em lata ou lendo um jornal, enquanto rapazes mais crescidos e afoitos pulavam, de uma local mais elevado, atirando-se como flechas, suas cabeças trespassando o ar, e as mocinhas olhando e rindo daquelas façanhas. 

Uma outra mamãe aproximou-se da minha mulher. Era jovem também. Conheceram-se ali, naquele mesmo dia. A outra tinha duas filhinhas, gêmeas loirinhas e mais novas que o nosso. Ficaram juntas patrulhando o lago, cada uma observando atentamente as suas crias e ajudando-se mutuamente. Travou-se ali aquela empatia mútua entre duas mães zelosas e joviais. Pareciam ser da mesma idade. A depender do movimento das crianças, elas moviam-se para lá e para cá, abanavam as mãos, gritavam pedindo "cuidado!". Erguiam-se e esticavam o corpo e pescoço para poderem enxergar melhor suas crias. Era um vai-e-vem de ambas, pra lá e prá, a depender de para que lado as três crianças se deslocavam na beira do lago. 

Pouco mais de duas horas depois da nossa chegada, o vento começou a soprar muito forte. Mas foi sem aviso algum. As nuvens chegaram muita rapidamente e encobriram o sol, e logo a chuva desabou, como se fosse um imenso balde virado pra baixo e derramando toda a água do mundo sobre aquele lugar.

Todos correram para atender aos pedidos de socorro.

Mas pouco ou nada dava para se ver.  A água desbrava do céu como numa cachoeira, formando uma cortina grossa e densa. O ruído da chuva batendo na água encobria os apelos, enquanto as crianças corriam sem rumo e eram logo recolhidas para longe da água o mais possível. Choveu por horas e sem descanso. Quando se encontravam, ficavam os pais agarrados aos seus filhos. Depois, a intensidade foi diminuindo. Era fácil identificar quem havia encontrado os seus. Bastava um rápido olhar para o lado para saber. Mas, aos poucos, as famílias inteiras  e unidas foram indo embora.

Depois vieram a polícia, os bombeiros, os equipamentos. E os curiosos. Já havia passado bastante do meio-dia. Havia nuvens amareladas mais para onde o sol se põe. 

Quanto tempo levaria? A chuva se foi totalmente. O céu abriu num azul forte. O lago, visto de onde estávamos, era  novamente largo, comprido, imenso. Nenhuma rajada de vento. E a  noite já apontava próxima e fria.
.
E o poema de Raymond Carver termina assim:

"E ele lembra a doçura, quando a vida era doce e docemente lhe foi dada aquela outra vida." 

Marco Antonio, 2014.

15.9.14

ANTES DA CHUVA.




Deixei o quarto todo arrumado e desci as escadas. Quando fechei a porta de casa, um carro passou em alta velocidade, era um automóvel grande e verde-escuro, sem brilho, esportivo, soltava fumaça pelo escapamento e fazia um ruído, como se fosse um ronco de motocicleta, e dava estouros. Mais adiante, ele virou a esquina, cantando pneus. De minha casa, ainda dava para ouvir as aceleradas que o motorista imprimia ao motor, quando já deveria estar duas quadras adiante. Uma mulher abriu a janela e olhou para os lados e pra cima, seus cabelos mostravam ter acordado repentinamente, estava assustada e perdida. Nem notou quando passei.

Eu nunca havia visto carros desse tipo em nosso bairro, apenas no centro antigo da cidade, perto de bares, em locais de consumo de drogas e prostíbulos. Moro em uma zona familiar, lugar para crianças brincarem em paz pedalando suas bicicletas, ou casais de velhos andarem na calçada. O ultimo acidente foi há dois anos, quando um rapaz distraído acionou o freio da motocicleta quando passava sobre uma mancha de óleo. Descontrolado, foi bater de frente com um carro que vinha do outro lado. Infelizmente, morreu. Os pais mudaram-se em seguida.

A mulher fechou a janela, batendo-a com força. Não demorou muito e o tal carro voltou. Apontou no extremo da rua comprida, e veio de lá pra cá, como se fumegante, trazendo os estouros do motor, fazendo-se acompanhar do característico ronco crescente. Afastei-me ao máximo. Com medo, pulei a mureta de uma casa e o vi, quando levantei um pouco a cabeça, ele se aproximando como uma bala. Mas, dessa vez, deu uma freada brusca, balançou a dianteira e a traseira de um lado pra outro da pista e, controlando-se em seguida, a velocidade foi diminuindo. E o ronco foi ficando grave, como se o motor estivesse impedindo seu som brutal de sair. Veio se aproximando cada vez mais devagar, contido, até atingir aquela velocidade mínima possível a um automóvel. Abaixei-me e escondi totalmente o corpo atrás do muro baixo. Segurei a respiração quando o carro chegou o mais perto possível. Notei que o motor parou de funcionar. Silêncio. De onde eu estava, abaixado, não dava para ver quem o guiava. O bairro era agora todo silêncio, como deveria ser.

Não havia brisa, as folhas das árvores e as flores do jardim estavam inertes, e fazia um calor sufocante. A mulher não abriu a janela dessa vez. E eu não fazia a mínima ideia de se o motorista, fosse lá quem fosse, ainda estava dentro do veiculo ou se havia decido. Arrastei-me bem devagar e alcancei a grama sob uma árvore do jardim da casa alheia e vazia, ficando quieto atrás de um arbusto. Agora eu olhava por trás da folhagem. Daria para escapar correndo, caso ele viesse ao meu encontro. Demorou um pouco. Ouvi então seus passos se aproximando, depois um som diferente de sapatos sobre a grama. Parou. O som agora ela o de ele voltando, abrindo a porta do veículo e a batendo sem força alguma. Parecia não ter pressa. Quando deu partida no motor, eu já havia corrido e já ia bem longe, e começou a chover muito. Choveu sem parar, até a manhã seguinte.

Marco Antonio, 2014.

20.7.14

VILLA PALLADIO



O taxista deu a volta correndo e abriu a porta do passageiro. De dentro saiu uma mulher carregando uma criança grande nos braços. Ela dizia, repetidamente, que o marido viria logo e pagaria a corrida, enquanto o taxista a ajudava a carregar a criança para dentro da clínica.  Havia sangue escorrendo e ficou uma trilha vermelha no chão. Ao voltar, o taxista olhou para dentro do veículo e balançou a cabeça. Fechou a porta do passageiro, limpou as mãos numa flanela que pegou lá dentro, ajeitou o boné, cruzou os braços, deu a volta e entrou pelo outro lado. Estacionou o táxi embaixo de uma árvore e esperou.

Dez minutos depois, o pai chegou. Estacionou o carro meio atravessado e entrou correndo na clínica. Nessa correria, errou a porta, deu meia-volta e acertou o lugar. Meia hora depois, voltou com passos lentos e recurvado. Tinha um ar meio perdido, enquanto tentava localizar o táxi. O taxista colocou o braço pra fora e acenou. O pai tirou uma cédula da carteira e disse que ficasse com o troco. O taxista agradeceu e não quis perguntar nada, ligou o motor e saiu. O pai deu a volta, sentou-se num banco de ferro sob uma árvore imensa e começou a chorar.

Era um meio de tarde e o céu estava claro e muito azul. O vento arrancava flores das árvores e o piso do estacionamento estava cheio delas. Eram flores amarelas, flores daquela época; acontecia de ano em ano, um espetáculo bonito de se ver, as flores sendo carregas pelo vento. Mas o pai estava com os olhos voltados para baixo e só fazia passar uma das mãos na cabeça, indo da testa e descendo até o pescoço.

Do outro lado da rua, um grupo de mocinhas passou cantarolando e rindo - riam muito e alto e, mesmo quando já estavam mais afastadas, dava para ouvi-las em seus sorrisos e brincadeiras umas com as outras. Não antes de as risadas sumirem de todo, veio de lá um médico, um médico ainda jovem e muito alto. Ele aproximou-se do pai, sentou-se ao lado,  no mesmo banco de ferro pintado de branco. Falou qualquer coisa pra começar, deu uma explicação rápida e simples e silenciou. Ficou ali por uns minutos e depois levantou-se. Nesse tempo, o pai não olhou para o médico, não teve coragem, nem disse uma palavra sequer.

Após o médico, veio uma enfermeira trazendo um copo d´água. Ele não notou a presença dela de imediato, deixando-a, sem querer, parada com um copo plástico na mão e sem dizer nada. Ele levantou a vista, limpou o rosto, deu um sorriso e estendeu a mão para pegar o copo. Uma flor pequena caiu dentro e ele a tirou com um dos dedos. A enfermeira esperou um pouco e afastou-se com uma flor amarela que pegara no chão.

Foi quando veio um ruído grave que foi se tornando mais intenso a cada segundo. Vinha de cima, do alto, de trás do prédio da clínica, mais para o lado esquerdo. A enfermeira parou no meio do estacionamento e vasculhou o céu tentando encontrar a fonte daquele som potente. O pai levantou o rosto e limpou as lágrimas para enxergar melhor. A luz do céu intensamente iluminado o cegou por um instante. Mas logo ele pode enxergar bem e nitidamente. Foi quando apareceu, por cima do prédio, um pequeno avião de duas cores contrastando com o azul do firmamento, e puxando atrás de si uma faixa ondulante onde se lia em letras vermelhas: VILLA PALLADIO. COMPRE.  SEU NOVO LAR.

Marco Antonio, 2014.

19.7.14

NÃO, VOCÊ NÃO SABE O QUE ESTOU PENSANDO


"Não, você não sabe o que estou pensando." Aliás, não há como saber o que se passa na cabeça de outras pessoas. Você pode até tentar adivinhar. Se acertar, será como um chutar uma bola para o meio de uma floresta e, sem controle nenhum sobre a trajetória, conseguir derrubar uma fruta doce no galho de uma árvore distante. As pessoas são assim, seus pensamentos são assim, um amontoado de galhos de uma floresta fechada, onde a luz do sol pouco penetra. E, nessas florestas, coisas novas nascem todos os dias, pois as sementes caem o tempo inteiro e, dali mesmo, brotam novos espécimes, um emaranhado de plantas de tamanhos, formas e cores variadas brotando, crescendo e morrendo sem parar. 

"Não, você não sabe o que eu estou pensando." - Eu falei novamente, quando a minha mulher perguntou sobre o fato de eu estar pensativo. Ela abriu a porta do carro e saiu, logo após eu ter estacionado em frente ao supermercado. Liguei o rádio e fiquei ouvindo música de estação AM bem popular, musica vulgar e ruim. O locutor, entre uma música e outra, falava da temperatura, anunciava as horas, e lembrava que, naquela noite, haveria a importante festa na praça. Era uma festa anual da igreja. Embora fosse uma festa religiosa, tinha apresentação de bandinhas locais. Após a missa, dava-se aquela festa, nada de sacro, digamos assim.

Uns vinte minutos depois, ela voltou empurrando um carrinho com dois sacos plásticos cheio de coisas. O vento batia em seus cabelos. Eu sempre gostava de vê-la com os cabelos soltos ao vento. Mesmo de longe, dava para ver seu sorriso para mim. Eu abri o porta-malas quando ela chegou mais perto. Abri a boca dos sacos e vi que havia cervejas e uns tira-gostos, além de umas coisas de cozinha e limpeza. Na saída do estacionamento, falamos sobre a festa na praça, se deveríamos ir ou não. 

"Eu não vou pra missa, então não é certo ir para a praça." - Ela falou. Então eu argumentei que não tinha nada a ver uma coisa com a outra. "Deveríamos ir", eu disse. Ela fez um gesto de consentimento com a cabeça. Disse que iria, sim. Então, mais adiante, deixei-a no salão-de-beleza. Marcamos para pegá-la na hora do almoço.

X   X   X

Era uma manhã de sábado ensolarada. Aproveitei e fui até uma oficina para dar uma olhada nos freios. O mecânico era um cara velho e calado. Perdera recentemente a mulher para o câncer, e aquilo o havia deixado ainda mais fechado e estranho. Deu o diagnóstico dos freios em poucas palavras e anunciou o preço com total desinteresse. Eu aceitei, e ele  fez o serviço. Embora não muito simpático, ainda mais agora, era um bom mecânico, experiente, confiável e correto. Na saída, estendi a mão em agradecimento. Ele mostrou as mãos sujas de óleo e as recolheu imediatamente, e deu as costas pra mim. Todo mundo sabia daquele jeito dele e relevava. Perto do meio-dia, fui direto para o salão.
J
Chegando lá,  minha mulher não havia ainda terminado, sentada numa cadeira com alguém a escovar-lhe os cabelos. A dona do salão anunciou: "Seu amor já chegou". E pediu para sentar-me e esperar "um pouquinho". "Daqui a um pouquinho ela já estará bem bonita pra você.".

Sentei e pequei uma revista, e nem me dei conta do cara que passou por mim.

Só ouvi gritos de uma mulher e o som de vidros quebrando. Ao levantar a vista para o fundo, o sujeito já estava de volta arrastando a esposa pelos cabelos, em meio aos pedidos de "calma!" e "não faça isso!". Já na porta, ele bateu com toda força na parte de trás da abeça dela. A mulher tombou para fora e caiu no asfalto. Ninguém levantou para socorrê-la. O cara a levantou com violência e a arrastou, afastando-a de nossa vista. Em seguida, ouvimos outro grito. Esbocei querer levantar. A dona do salão, como se soubesse as razões por trás daquilo, pediu para todos ficarem onde estavam.

"Isso é coisa deles". - Ela disse.

A minha mulher levantou pouco depois. Estava com os cabelos bem arrumados e a unhas pintadas de vermelho.  Mais umas duas ficaram prontas ao mesmo tempo que ela. Saí, meio sem jeito por não ter defendido a outra mulher. Quando entramos no carro, estava muito quente e ligamos o ar-condicionado na máxima potência. O sol batia forte e a rua estava vazia. Acelerei. Ela pediu para almoçarmos num restaurante, antes de irmos pra casa. Pedimos bife com arroz e salada. Enquanto aguardávamos, comentamos sobre o sujeito que havia espancado a mulher no salão. "Não é a primeira vez." - Ela disse - "Mas não a conheço bem, embora ela frequente o salão. Mas a manicure comentou comigo que já houve outras vezes, várias vezes. Não lá no salão. Essa foi a primeira vez. Nem parece que ele a trata assim. Ele já a buscou outras vezes, e ele parecia tão amoroso das outras vezes..."

X   X   X

Mais tarde, já noite, fomos para a igreja e participamos da missa. Após a cerimônia, todos em festa em torno do coreto na praça, vimos o casal da briga no salão. Estavam de mãos dadas. Os cabelos dela encobriam um lado do rosto. De longe, eles nos viram, desviaram e tomaram outro rumo. Mas não paravam para conversar com ninguém, apenas andando e de mãos dadas. Num certo ponto, ele passou o braço em torno da cintura dela. E depois sumiram da nossa vista.

Paramos num barraca com uma decoração bem espalhafatosa com bandeirolas e cores vivas variadas, na qual estavam a servir sorvete, bebidas alcoólicas, refrigerantes, salgados, doces.

"Peça para colocar raspas de côco na minha pipoca" - A minha esposa pediu. Parecia muito satisfeita por estar ali.

"Eu vou querer uma coca-cola também, meu bem." - Ela complementou, sorrindo como uma criança: "Que noite linda, meu amor. Eu estou muito feliz. Muito feliz!".

Marco Antonio, 2014.

16.7.14

DIA DE PRAIA



Ela estava sentada à beira d´água. As ondas vinham, batiam em seus pés e voltavam, num movimento constante e repetitivo. De vez em quando, uma mais forte chegava até o meio das coxas, e ela dava um grito e ria alto. Mais acima, na areia, eu a observava tomando coca-cola. Era uma tarde nublada e a água estava mais fria do que de costume.

Nós íamos juntos àquela praia desde quando namorávamos. Mas naquela época era diferente, éramos jovens e praticávamos jogos de várias modalidades, esses jogos típicos de beira de praia. E foi ali que nos vimos pela primeira vez. Num fim de tarde, todo mundo sentado na areia morna, cansados após uma partida de vôlei, ela passou com umas amigas. Não que fosse a mais bonita, mas foi ela quem sorriu pra mim. Logo, no dia seguinte, no mesmo horário do dia anterior, quando estávamos novamente cansados após uma longa partida de futebol na areia fofa, ela novamente passou com as amigas e, mais uma vez, deu-me um sorriso.

Desde aquele dia, que se vai longe, do qual nos recordamos com doçura dos sonhos e da beleza da juventude em sua plenitude, festejamos voltar todos os anos para a mesma praia onde nos conhecemos.

- Vamos! - Eu gritei - Já está bem frio aqui.

Então ela veio de lá, após levantar-se com um pouco de dificuldade, andando lentamente com pisadas fortes e afundando os pés na areia seca. Chegou ofegante e tomou um gole de refrigerante. Pegamos nossas coisas e subimos o aclive bem devagar. Mais acima, num gramado, havia uma bica de água doce e nos lavamos, tomamos água mineral e entramos no carro.

Ela resolveu dirigir. A estrada estava movimentada, era uma sexta-feira, e muita gente afluía para aquela região. Acomodei-me no banco do carona e pus uma musiquinha pra tocar. Abaixei o volume e peguei um cochilo leve e sem esforço, num misto de sonho e vigília.

Não sei quanto tempo se passou. Acordei com um som forte de freios, seguido de um outro som de impacto potente mais à frente do nosso carro. A minha mulher diminuiu a marcha rapidamente. O cinto-de-seguranca apertou-me o peito. Abri os olhos e vi, logo adiante, carros atravessados na pista. Ela disse ter visto tudo, pois estava atenta ao trânsito intenso.

Ficamos mais de uma hora parados. Carros de um lado e do outro, uma fila bem longa. E uma longa espera.

Nesse meio tempo, minha mulher calou-se e entrou em sono profundo. Aproveitei e fui até o ponto onde ocorrera o acidente. Três carros envolveram-se na batida, mas sem vítimas fatais, felizmente. Quando a pista foi liberada, voltei ao nosso veículo e a acordei. Pedi a ela para passar para o banco de trás, de modo a continuar dormindo mais confortavelmente. Ela pulou para a traseira sem protestar.

Liguei o rádio do carro e botei o som baixo, como fizera antes. Já era noite e luzes intensas de faróis cruzavam a minha visão. O locutor, sob um fundo musical romântico, começou a ler uma uma carta de uma ouvinte, na qual dizia estar profundamente triste e solitária, pois o namorado havia ido trabalhar fora numa mineradora lá no fim do mundo. Então eu aumentei um pouco o volume para poder acompanhar melhor a leitura da cartinha. O locutor tinha uma voz empostada e realçava as partes mais tocantes com a sua curva melódica romântica; fazia pausas longas, como se meditativas e solenes, enquanto abaixava o volume da música; e então recomeçava num tom mais leve e tranquilo o parágrafo seguinte. A moça dizia que esperaria o seu amor por quanto tempo fosse necessário, nem que se passassem cem anos. Ela dizia ter 22 anos, 1,70m, morena clara, cabelos castanhos, católica carismática, segundo grau completo, uma moça do interior com um emprego de caixa num supermercado.

Logo depois, a minha mulher  acordou e perguntou sobre as horas. E disse, em seguida:

- Tive um sonho. Tão pouco tempo cochilando, e um sonho tão longo, pareceu durar horas, um pesadelo, na verdade. Sonhei ainda estarmos na praia, quando começou, do nada, uma tempestade, chuva forte, raios e trovões, e não dava para enxergar um metro à frente. As ondas vinham e batiam fortes. E eu me perdi de você.  Gritava alto, chamando por seu nome, mas o som dos trovões e da chuva eram mais altos. Eu corria das ondas que vinham, mas ela não cansavam de voltar, cada vez mais fortes, e eu era obrigada a correr mais e mais numa areia que parecia não ter fim, para não ser tragada pelas ondas. A última delas chegou a cobrir meus pés, embora tenha corrido muito. E, do mesmo jeito que veio, a tempestade se foi, e o sol iluminou tudo novamente. O mar estava novamente calmo, e a praia deserta. Você não estava mais lá. Para onde eu olhava, só havia água e areia.

- Já estamos perto de casa - eu a interrompi -, talvez a menos de cinco minutos.

- Que bom... chegue logo....-  e voltou a adormecer.


Marco Antonio, 2014.

7.7.14

COMO SÃO BELAS AS NUVENS



Chegaram antes das dez da manhã daquele sábado de pouco sol. Eu e meu amigo sentamos em banquinhos de cimento debaixo da mangueira, e elas foram direto para a cozinha. Esse casal amigo já havia nos visitado muitas outras vezes e todos estavam bem à vontade. Após aquela conversa inicial sobre o trânsito e a semana de trabalho, fui até a geladeira e voltei com uma cerveja e dois copos. Não tardou e esse meu amigo começou a falar sobre uma antiga namorada. Nunca havia falado sobre ela na minha presença. Disse que era coisa de muito antes de conhecer a mulher dele. Quando a cerveja acabou, ele mesmo foi pegar outra e voltou com umas azeitonas. E continuou a falar sobre a tal moça do passado dele. Então eu perguntei sobre o porque de estar lembrando dela naquele momento.

- Afinal, meu amigo, ela continua desimpedida? - perguntei, lá pelo meio da conversa.
- Não, claro que não! É casada e tem filhos. Tem um ótimo casamento... - ele respondeu.
- Sim, e por que logo agora ela veio parar aqui nessa conversa?

A mulher dele veio vindo. Trazia outra cerveja e uns bolinhos de bacalhau. Colocou tudo sobre a mezinha de cimento sob a mangueira e levantou o olhar para o céu. De repente, após ajeitar os pratos e virar-se, ficou parada e olhando pra cima. Não demos atenção e começamos a mexer nos bolinhos, quando ela falou:

- Meu Deus, como as nuvens estão! Nuvens lindas, meu Deus! Vocês estão vendo? Vocês estão vendo?! Olhem! São nuvens coloridas, cortadas por imensos arco-íris, eles descem em círculos de lá de cima.

Havia nuvens no céu, talvez em maior quantidade, além o normal, a  encobrirem o sol. Mas não eram coloridas de forma alguma. Contudo, ela não parava de dizer aquelas coisas sobre arco-íris circulares descendo e girando. O meu amigo a segurou e a fez olhar para baixo. Pediu que fechasse os olhos por um tempo para depois voltar a olhar as nuvens. Antes de puder voltar a mirar o céu, ela queixou-se de náuseas e fomos obrigados a levá-la para dentro de casa. Minha mulher, quando a viu naquele estado, o rosto pálido, ficou assustada. "Há poucos minutos... não pode ser... ela estava ótima e alegre", a minha mulher repetia, "ela estava bem", "ela estava bem".

Na segunda-feira, soubemos do resultado. O meu amigo ligou e disse tratar-se de um tumor no cérebro, coisa não tão fácil, embora não fosse também impossível de cura, pois o tumor estava ali fazia pouco tempo, embora crescendo, sem nenhum sintoma de mal-estar anterior ao acontecido em nossa casa. Perguntei como ela estava. "Um pouco sonolenta", foi a reposta dele, "Ela continua falando das nuvens lindas, de serem de verdade, e continua a falar dos arco-íris circulares descendo do céu, e diz como se tivesse visto mesmo tudo aquilo. Não fosse pelo tumor, daria até para acreditar, do jeito que ela fala pra mim."

x  x  x

Um ano e meio depois, mais ou menos, eles voltaram a nos visitar. Sentamos mais uma vez nos banquinhos de cimento sob a mangueira. E elas, a mulher de meu amigo e minha mulher, trouxeram cervejas regularmente, e uns camarões saborosos. Quando se afastaram para fazer mais uns pratos, meu amigo voltou a falar da antiga namorada. Ele já estava claramente embriagado, e sua voz era pastosa. Mesmo assim, perdi a paciência e perguntei se não estava feliz por ter a mulher de volta após um longo e doloroso tratamento. Então ele olhou para o céu retalhado por nuvens e o fixou longamente. O céu era de um azul profundo, azul que antecede o entardecer, um azul rasgado por imensas nuvens compridas refletindo a luz do sol já baixo e mais frio. E ele permaneceu com o olhar fixo para cima, acima das folhas a balançarem ao vento. Foi quando as mulheres estavam voltando, cada uma com um pratinho numa das mãos. De súbito, ficaram paralisadas no meio do caminho ao verem o meu amigo  no que parecia um estado de contemplação, olhos vidrados, a boca semi-aberta, meio caído para trás, as costas apoiadas na mesa de cimento. A mulher dele, ainda inerte, deixou os pratos caírem, e os bolinhos rolaram ao longo da inclinação do terreno. Foi quando ele caiu de lado, e o impacto foi acompanhado de um som abafado de carne batendo no chão."Levanta ele! Levanta!" - A minha mulher gritou.

Estava desmaiado e  pesado, muito pesado. Precisou de nós três para colocá-lo novamente de pé. Quando o sentamos novamente na cadeira, a esposa veio de lá com uma panela e jogou água fria na cara do meu amigo.  Aquilo o fez estremecer e, em seguida, puxar o ar com força, fazendo o peito gordo ir e voltar umas três vezes.

já estava escuro e frio. Entraram no carro, ela sentou-se ao volante e tentou desculpar-se, mas parecia confusa e exausta. Ele inclinou o recosto do banco do carona para trás e deixou-se cair, o corpo esparramado, braços cruzados sobre o peito. Afastei-me, enquanto ela falava alguma coisa para a minha mulher, elas se davam bem, de verdade, eu sabia disso; e, por isso, afastei-me, para poderem conversar melhor. Logo depois, o farol do carro iluminou a estrada de terra e saiu vagarosamente. Da minha casa, disposta no lugar mais alto do terreno, acompanhei o brilho das lanternas traseiras do carro deles até perderem-se de vista.

Nunca mais voltaram e nem os convidamos mais. Nem mesmo sabemos onde agora moram.

Marco Antonio, 2014.

4.6.14

TODO PODER E TODA GLÓRIA.



Ao bom amigo Valter Heller.

O mundo parecia rodar ao meu redor quando levantei naquela manhã fria de agosto. Eu havia bebido muito na noite anterior e ainda havia cheiro de cerveja na roupa e em toda a casa, e a visão era de garrafas espalhadas pelo chão da sala e por cima dos móveis. Lá fora, caia uma chuva fina e constante, nem ruído fazia, de tão fina que era. Olhei pela janela, abrindo um pouquinho a cortina. A luz doía nos olhos, fazendo a náusea vir de lá do fundo do estômago.

Deu apenas pra saber, de relance, que a rua estava vazia, apenas água fina escorrendo pela calçada. Então eu fui até o banheiro e tomei um longo banho. A água pesada e forte sobre as costas; os olhos fechados, um zumbido fino na cabeça, a náusea, e o ruído do impacto da água no piso escorrendo pelo ralo. Já menos sonolento, fiz um café, Deus sabe como, e dormi o resto do dia.

quando já  noite, ainda a mesma chuva fina caindo lá fora, troquei de roupa e fui até a uma lanchonete próxima. Pedi um daqueles sanduíches imensos e gordurosos. Sentei-me numa mesa bem afastada, embora o lugar estivesse vazio. Ao fim -  parecia estar novamente vivo -, o dono do estabelecimento perguntou o que eu ainda estava fazendo ali, e foi logo dando ordens de ir embora.

- Vou fechar!

Ao voltar, o mais depressa que pude, não vi uma única alma pela frente, embora não fosse tão tarde assim. A rua estava deserta, as demais casas com as portas e janelas fechadas contra o frio e a umidade. Entrei, liguei a TV, estava passando notícias, e fiquei ouvindo a apresentadora, enquanto limpava a sala de todas aquelas garrafas da noite anterior. Havia muitas garrafas e latas de cerveja, mas também algumas poucas de vinho, uísque, vodca, até de rum havia também.

Passava no canal uma longa reportagem sobre a mais recente crise. Deitei-me no sofá e  tentei prestar atenção ao conjunto confuso de informações e declarações de autoridades do sistema financeiro, um desfile interminável de empresários, ministros, governadores, líderes políticos, economistas, consultores e palpiteiros falando pelos quatro cantos do mundo. Estranhou-me entrevistarem também autoridades militares e religiosas. Aquilo havia explodido, ao que parece, num único dia, talvez só a partir do turno da tarde, enquanto eu dormia, naquele dia em que eu havia dormido tanto. E, dada a surpresa geral, sem maiores avisos. Mas lá fora parecia ir tudo bem. Pelo menos, entre a minha casa e a lanchonete, eu não vi nada de estranho, pessoas correndo ou desesperadas, nem cães latindo. Aliás, não vi quase ninguém, essa é a verdade. E passo a entender o dono da lanchonete.

- Aquele imbecil a comer hamburguer, ovos fritos, queijo e alface dentro de um pão imenso num dia assim. - Deve ter pensado isso.

Tentei me situar, mas havia ainda muitos ecos da noitada anterior que impediam qualquer esforço para concentrar-me no volumoso dos fatos. Eu tentava entender a reportagem e, ao mesmo tempo, relembrar os acontecimentos da noite anterior, esforçava-me pra recobrar alguns detalhes escondidos não sei onde, era difícil saber quais exatamente foram  pessoas que estiveram ali comigo. A memória, severamente confusa e comprometida, bem mais fácil então  prestar atenção ao programa jornalístico na TV.

dava a impressão de grande emergência, quase calamidades bíblicas de gafanhotos sobre as lavouras. passavam videos profissionais e amadores. um deles mostrou um grupo enfurecido de motoristas de caminhão invadindo um posto de gasolina. Em seguida, imagens aéreas de um congestionamento gigantesco numa rodovia em São Paulo. Acidentes automobilísticos envolvendo centenas de carros, aeroportos fechados, lojas de alimentos invadidas em Curitiba. Fúria nas favelas, medo nas ruas centrais dos grandes centros, caos no Rio e outras capitais do país, EUA, México, China. Em Londres, a coisa parecia bem pior. Deus do Céu, o que era aquilo, afinal?

Fui até a geladeira e abri uma cerveja. De volta ao sofá, cobri-me com um cobertor. Foi o suficiente. Cai no sono mais uma vez.

De madrugada, ouvi batidas fortes na madeira da porta e acordei de um sono sem sonhos. Deu para ouvir uma voz suplicando, mas o som da TV a suplantava. A TV iluminava as paredes da sala com intensidade variada de brilho, meia-luz e sombras se alternando. O som das batidas misturava-se à voz monótona de uma mulher em oração num programa religioso, aqueles programas de igrejas, seitas e seus pregadores. Estava muito frio e sentia-me confortável sob a coberta grossa de lã. Não levantei. Tive medo. Esperei até as batidas cessarem, a respiração contida, os olhos fixos na porta da sala

Mas quem lá estava lá, seja quem fosse, poderia até ser uma amigo, se foi, restando apenas a voz monótona de uma mulher de meia-idade em oração na tela.

Ela repetia sem parar uma evocação minimalista ao Senhor. O olhos estavam voltados para baixo, e um véu branco encobria boa parte dos volumosos cabelos grisalhos que não chegavam a tocar os ombros. Aquela repetição - calma, lenta e cadenciada - durou mais uns dois minutos. Era tranquila. E o teor era de agradecimento, puro e total agradecimento por todas as coisas e dádivas neste mundo. Ao seu término, um silêncio breve e solene, seguido de imagens de um  imenso jardim de margaridas brancas iluminadas pelo sol. Nenhuma música de fundo, nenhuma legenda ou qualquer mensagem posterior.

Lá fora,  o leve o som da chuva batendo finamente na calçada, e que agora se fazia ouvir.

A  cortina da janela estava aberta. E eu vi bolas enormes de fogo caindo do céu.

Marco Antonio, 2014.

2.6.14

APÓS A FESTA



"Você nunca está só"  - Hubmann.

Pediu uma bebida e recostou-se em um balcão recuado. Minutos depois, ela chegou, ela e mais três amigas. Chamou-lhe a atenção o azul do vestido e o verde dos olhos. Das quatro moças, somente ela sorria; e, mesmo com o som alto da música que tocava bem ritmada, dava para ouvir a risada aberta e ampla. Passado um quarto de hora, ela não parecia tê-lo notado de modo algum, mesmo quando seus olhos abarcavam o balcão onde ele se debruçara.

Depois foram só pensamentos.

Começou quando ele, ao entrar numa livraria, pegou um livro e mirou a capa, o título e o nome do autor. Em seguida, abriu-o numa página interna e, ainda no primeiro parágrafo, imaginou o que ela pensaria sobre o que estava escrito ali na folha aberta. Após o que, comprou o volume e o leu lentamente, intercalando frases e pensamentos, um processo vagaroso e constante de breves leituras e longas paradas. Não aquele pensamento reflexivo sobre o que se lê, ou a refutação da ideia exposta ou ainda a busca de alguma correlação com a realidade e com outras obras lidas. Um diálogo, não com o autor, mas com um segundo leitor imaginário a ler em paralelo as mesmas palavras, seguindo a mesma marcação das vírgulas e o ritmo das frases, uma após a outra, páginas após páginas, até o final. No fim de tudo, a certeza de que ambos haviam lido e comentado aquele livro singular.  Mas não parando por aí. Também muitos outros, por meses, uma variedade de autores, músicas, compositores, obras de arte, experiências as mais diversas, desde as meramente intuitivas e espirituais, indo até os desdobramentos de natureza religiosa, passando pelas percepções visuais, paisagens de um cabedal de viagens, além do outro extremo mais humano das amizades, relações pessoais e amorosas, sentimentos, sonhos, mentiras, frustrações e insucessos, alegrias e os pequenos momentos doces de vida.

Com os anos, não foi sobrando sequer um pequeno espaço onde houvesse somente ele e sua alma única neste mundo. Nada daquele isolamento próprio que recai sobre cada um de nós desde o nascimento. Nem resquícios da solidão particular à todo ser humano jogado no seio da Criação. Ao seu lado, sempre presente aquela mulher de vestido azul, olhos verdes e sorriso largo. Sempre acompanhado, antes mesmo do raiar do dia, desde o sono mais profundo e confuso das noites pesadas, desde a manhã do dia anterior, desde muitos dias anteriores. Estava à beira de, por nunca estar a sós consigo, isolar-se de tudo o mais.

Até o dia em que a viu novamente e de verdade. Foi quando virou o rosto na rua movimentada. O sinal lá adiante fechou -  e lá estava ela atravessando sozinha a larga avenida na faixa de pedestres, somente ela. Como naqueles filmes em que se pretende marcar e alongar uma breve cena,  aquele momento transcorreu em câmera lenta -  pesado em seu ritmo, longo e denso em sua duração. O vento forte batia no vestido solto, não aquele azul da festa, mas um de várias cores alegres e misturadas em desenhos geométricos. Soprava em curtas rajadas nos cabelos negros pesados à altura dos ombros. Por detrás da cena, os carros todos parados, um ao lado do outro, os faróis acesos à meia-luz, os motores em baixa rotação fazendo aquele zumbido grave e constante, e os motoristas paralisados ao volante na longa espera, enquanto ela passava, tendo para isso todo tempo que restasse. Já perto do outro lado, virou o rosto para ele, e o mirou por um instante breve e limitado, mostrando que o  reconhecia, desejando que a visse. E, pela primeira vez, ele pode olhar para o belo sorriso a ele dirigido, agora a sua sua alma liberta.

Marco Antonio, 2014.

1.5.14

NO ESCRITÓRIO



Hoje, cedo, vi num jornal da internet que o corpo de uma criança fora encontrado num lixão. Havia uma foto mostrando o ar de desespero dos pais,  e o desamparo dos dois juntos ao corpo e ao lado dos policiais. Nem li a matéria completamente, não deu tempo.

Por volta do meio-dia, um colega de trabalho relatou que um cano d´água estourou em sua rua, "foi um caos total, o jato de água subia uns 10 metros" - ele disse - "e abriu um rombo enorme no asfalto" e, por isso, havia chegado atrasado ao trabalho. Esse meu colega tem uma mulher bonita e uma filhinha de olhos verdes; trabalha duro, talvez chegue a ser chefe do departamento algum dia. Sei desses poucos detalhes porque encontrei a sua esposa e a filhinha numa dessas festas de fim de ano na empresa. Ele pouco fala comigo, mas sei que é esforçado, além de correto e disciplinado. Estranhei ele vir até a minha pessoa para contar a história do cano que partiu em sua rua. Parecia mesmo preocupado, angustiado até.Talvez tenha conversado comigo para justificar o atraso, embora não seja eu o seu chefe e trabalhe "bem longe" do seu setor. Nossa comunicação se dá através do fluxo de informações na rede de computadores da empresa - o emaranhado de solicitações, ordens, análises, aprovações, ações, erros, correções. Nem sei mesmo quem são as pessoas mais próximas desse meu colega no nosso escritório, se  ele pratica algum esporte, não sei qual o seu time do coração ou em qual partido vota. Quase um estranho.

Ao levantar, ele parecia recurvado, apesar dos passos apressados. Eu o observei, enquanto ele se afastava em direção ao banheiro dos homens. Ao chegar em frente ao que parecia o seu destino, desviou-se e tomou outra direção. Tirou os óculos e o colocou novamente no rosto. Em seguida, perdeu-se no corredor e sumiu.

No fim da tarde, já no acabar de um longo expediente, fui chamado à sala do chefe. Ele fez uma introdução longa e pausada. Eu estava muito cansado e torci para acabar logo. Mas ele continuava em sua explanação longa, metódica, analítica e entremeada de exemplos. Em alguns momentos (deu vontade de rir), parecia estar contando meio que ao modo de parábolas bíblicas. Meu chefe é alto e magro, veste-se bem e parece nem mover-se em sua poltrona enquanto fala, lembra uma pedra de mármore lá na cadeira da gerência. Esse meu chefe é casado pela segunda vez, tem duas filhas do primeiro casamento e um garoto do segundo, e ele falou disso tudo em sua narrativa poética e bíblica, quase romanceando sua vida, enquanto eu escutava na cadeira à frente da sua mesa. Um porta-retratos mostrava uma foto dele junto à sua segunda esposa numa praia. Ele pegou esse porta-retratos para melhor mostrar a sua relação com a família, o trabalho e, por mais estranho que pareça, com a própria existência, dando a entender ser ela um pedaço de tudo que há, resultado de leis imutáveis do cosmos. Em meio a isso tudo, citou que um colega nosso havia chegado atrasado, havendo se justificando com o estouro de uma cano da companhia de água da cidade. Então ele disse, pronunciando lentamente as palavras: "Um cano de água..." - e sorriu - "meu Deus, um cano de água!". No final, quando não havia mais luz entrando pela imensa janela às suas costas, ele fez uma pergunta, apontando o dedo para mim:

"O que você fez hoje cedo, antes de vir para o trabalho?"

"Li uma matéria sobre o corpo de uma garota que fora jogado num lixão aqui próximo de nossa cidade." - respondi - "A policia foi chamada e os pais foram levados ao local. Eles pareciam desesperados. Uma imagem muito triste..." -  aproveitei, livrei-me mentalmente da matéria do jornal e fiz uma pergunta direta e sem rodeios, pois já estava exausto:

"O que o senhor pretende dizer para mim, afinal?"

Ele recuou um pouco a poltrona. Apontou para mim novamente e falou: "Ah, você precisa esquecer isso...". E levantou-se. Tirou o paletó que estava estendido na poltrona e o vestiu. Ajeitou o nó da gravata, afastando em seguida a poltrona para trás. Aproveitei e levantei também. Sem mais palavras, fui saindo. Olhei para o meu chefe por apenas dois segundos, no máximo. Deu-me novamente vontade de rir, mas apenas pedi desculpas por estar me retirando. Ele sorriu, e parecia sincero em seu gesto,  estendendo-me o braço para um aperto de mão.

Voltei à minha sala. Quando saí do escritório, não havia mais ninguém. Tive que apagar a luz.

Marco Antonio, 2014.

18.1.14

LINDAURINHA




Adaptação de uma narrativa de Ubaldino Carneiro no Orkut.


Lembrei agora de uma irmã adotiva, Lindaurinha.

Minha mãe a adotou ainda menina. Ela era filha natural de uma mulher pobre que já tinha tido uns quatrocentos filhos. A minha mãe tinha fama de generosa e católica caridosa. Todo mundo achou lindo o gesto. Mas, como conhecia bem o caráter dela, logo desconfiei que queria mesmo era uma empregada. Tanto que, em vez de pegar a recém-nascida, optou por Lindaurinha, pois já tinha uns 6 anos.

Em pouco tempo, botou a menina pra fazer todo tipo de serviço. Nos dias festivos, vestia uma roupa nova em Lindaurinha e a apresentava como filha. Todos achavam aquilo muito lindo. Terminada as festividades, voltava ao serviço doméstico, a limpar, varrer, lavar, escovar, servir. Eu tinha uma pena desgraçada. Mas só eu achava aquilo errado. Meus irmãos e irmãs aproveitavam e exploravam ainda mais a garota

Fui estudar na capital e, nesse vai-e-vem de férias e estudo, fui observando que Lindaurinha estava crescendo bem bonitinha. Não deu outra. Meu irmão Teobaldo comeu Lindaurinha e a engravidou. De pronto, minha mãe a pôs pra fora de casa. E todo mundo aplaudiu o gesto de firmeza da católica.

A minha irmã adotiva, coitada, sem teto e nem chão, foi morar com os parentes dela. Pelo fato de ter vivido na casa de gente rica, criada como filha da minha mãe, supostamente com todos os confortos e regalias e frescuras de gente bem-de-vida, os parentes dela a invejavam. Porra, a verdade é que deram casa pra Lindaurinha, mas a humilharam mais do que na casa da minha mãe.

De volta da faculdade, já homem, dei-me conta da injustiça que estavam a cometer, e a chamei de volta pra morar em nossa casa, que eu entendia ser a casa dela também. A velha ficou louca de raiva. Mas eu reafirmei sobre o menino ser um neto dela, de verdade mesmo, sangue, pois filho do filho; e que Lindaurinha era filha também, embora adotiva, e seria imoral deixá-la viver na miséria e na humilhação sob a outra família. Diante da negativa insistente, apelei para sua fama de católica caridosa e fiz chantagem. Ameacei contar para o padre sobre a vida servil de Lindaurinha, desde os seis anos de idade, em nossa casa. Lindaurinha voltou. E agradeceu-meu muito.

Era bonita, pernas grossas, corpo escultural. E parecia gostar de mim, porque, de todos ali na família, eu era o único a tratá-la como como gente e uma igual.

A carne é fraca. Tentei seduzi-la. Mas, por mais estranho que pareça, ela rejeitou a investida, algo que na minha cabeça seria fácil. E ela rejeitou firmemente, talvez olhando-me como mais um entre os outros filhos da minha mãe. Talvez eu me considerasse melhor do que o resto. Ilusão. Ora, talvez ela não pensasse exatamente assim.

Era de Teobaldo, disse, pai do filho dela. Tentei mostrar sobre Teobaldo ser um canalha, que a havia abandonado com um filho nas costas, nada fazendo para impedir a expulsão. Mas não teve jeito. Teobaldo tinha sido o primeiro, e "o amava de verdade e loucamente", ela disse. 

Aí... a gente desiste e larga de mão. Poucas coisas valem uma luta vigorosa. Minha mãe percebeu o lance e botou Lindaurinha pra fora outra vez.


(Ubaldino Carneiro, Janeiro de 2014 na comunidade DMM do Orkut).