21.9.14

LIMONADA



A prosa que segue no parágrafo seguinte é apenas uma alusão a um poema de um contista americano de quem gosto de ler, e cujo primeiro livro adquiri em 1994. Raymond Carver. Não há espaço pra falar sobre ele aqui. O título do poema, escrito em estilo livre e moderno, é Limonada, na tradução, pelo menos. O argumento por trás do título é bem interessante, a limonada é um nada num mundo de contingências. Vale a pena ler.

Por volta das oito e meia da amanhã, o tempo ainda frio, saímos para o passeio de domingo. Quando chegamos, o sol iluminava toda a extensão à nossa frente. A minha mulher pegou o nosso garotinho pelo braço e foi logo mostrar o lago. A superfície da água estava plana como um espelho, e refletia o firmamento e suas nuvens. Imenso. O menino alargou o olhar e deteve-se diante da visão da lâmina d´água que perdia-se no horizonte.

- Mamãe! - gritou e agarrou-se ao pescoço dela. Ela o abraçou e conteve de imediato o seu temor.

Embora o resguardasse dos perigos, e temesse por ele em todos os minutos de sua vida, jamais imaginaria que, dentro em pouco, o filho amado estaria sob aquelas águas profundas, bem como jamais poderia saber que o corpo dele jamais seria encontrado.

Às vezes, embora não seja comum, a gente conta uma história assim, já revelando o final. Como um sujeito que chega ao médico e vai mostrando de cara a perna quebrada, e só depois vai dizer como aconteceu. O poema de Carver começa assim também:

"Quando ele veio à minha casa meses atrás para medir as paredes para fazer estantes de livros, Jim Sears não parecia um homem que ia perder seu único filho nas águas agitadas do rio Elwha."

Continuando, aquele era, e ainda é, um lugar muito bonito. Jamais voltei a vê-lo. Água, areia, bares, comida, sol, famílias  e diversão. E dava sempre muita gente. 

No início da manhã, antes das dez, foram chegando os casais e suas crianças. Um monte delas, menores e grandes, numa imensa algazarra. E já se via gente nadando pra lá e pra cá, gritos e pedidos de "cuidado!". As mamães chamando pelos seus, os homens sentados em cadeiras reclináveis, tomando cervejas em lata ou lendo um jornal, enquanto rapazes mais crescidos e afoitos pulavam, de uma local mais elevado, atirando-se como flechas, suas cabeças trespassando o ar, e as mocinhas olhando e rindo daquelas façanhas. 

Uma outra mamãe aproximou-se da minha mulher. Era jovem também. Conheceram-se ali, naquele mesmo dia. A outra tinha duas filhinhas, gêmeas loirinhas e mais novas que o nosso. Ficaram juntas patrulhando o lago, cada uma observando atentamente as suas crias e ajudando-se mutuamente. Travou-se ali aquela empatia mútua entre duas mães zelosas e joviais. Pareciam ser da mesma idade. A depender do movimento das crianças, elas moviam-se para lá e para cá, abanavam as mãos, gritavam pedindo "cuidado!". Erguiam-se e esticavam o corpo e pescoço para poderem enxergar melhor suas crias. Era um vai-e-vem de ambas, pra lá e prá, a depender de para que lado as três crianças se deslocavam na beira do lago. 

Pouco mais de duas horas depois da nossa chegada, o vento começou a soprar muito forte. Mas foi sem aviso algum. As nuvens chegaram muita rapidamente e encobriram o sol, e logo a chuva desabou, como se fosse um imenso balde virado pra baixo e derramando toda a água do mundo sobre aquele lugar.

Todos correram para atender aos pedidos de socorro.

Mas pouco ou nada dava para se ver.  A água desbrava do céu como numa cachoeira, formando uma cortina grossa e densa. O ruído da chuva batendo na água encobria os apelos, enquanto as crianças corriam sem rumo e eram logo recolhidas para longe da água o mais possível. Choveu por horas e sem descanso. Quando se encontravam, ficavam os pais agarrados aos seus filhos. Depois, a intensidade foi diminuindo. Era fácil identificar quem havia encontrado os seus. Bastava um rápido olhar para o lado para saber. Mas, aos poucos, as famílias inteiras  e unidas foram indo embora.

Depois vieram a polícia, os bombeiros, os equipamentos. E os curiosos. Já havia passado bastante do meio-dia. Havia nuvens amareladas mais para onde o sol se põe. 

Quanto tempo levaria? A chuva se foi totalmente. O céu abriu num azul forte. O lago, visto de onde estávamos, era  novamente largo, comprido, imenso. Nenhuma rajada de vento. E a  noite já apontava próxima e fria.
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E o poema de Raymond Carver termina assim:

"E ele lembra a doçura, quando a vida era doce e docemente lhe foi dada aquela outra vida." 

Marco Antonio, 2014.

15.9.14

ANTES DA CHUVA.




Deixei o quarto todo arrumado e desci as escadas. Quando fechei a porta de casa, um carro passou em alta velocidade, era um automóvel grande e verde-escuro, sem brilho, esportivo, soltava fumaça pelo escapamento e fazia um ruído, como se fosse um ronco de motocicleta, e dava estouros. Mais adiante, ele virou a esquina, cantando pneus. De minha casa, ainda dava para ouvir as aceleradas que o motorista imprimia ao motor, quando já deveria estar duas quadras adiante. Uma mulher abriu a janela e olhou para os lados e pra cima, seus cabelos mostravam ter acordado repentinamente, estava assustada e perdida. Nem notou quando passei.

Eu nunca havia visto carros desse tipo em nosso bairro, apenas no centro antigo da cidade, perto de bares, em locais de consumo de drogas e prostíbulos. Moro em uma zona familiar, lugar para crianças brincarem em paz pedalando suas bicicletas, ou casais de velhos andarem na calçada. O ultimo acidente foi há dois anos, quando um rapaz distraído acionou o freio da motocicleta quando passava sobre uma mancha de óleo. Descontrolado, foi bater de frente com um carro que vinha do outro lado. Infelizmente, morreu. Os pais mudaram-se em seguida.

A mulher fechou a janela, batendo-a com força. Não demorou muito e o tal carro voltou. Apontou no extremo da rua comprida, e veio de lá pra cá, como se fumegante, trazendo os estouros do motor, fazendo-se acompanhar do característico ronco crescente. Afastei-me ao máximo. Com medo, pulei a mureta de uma casa e o vi, quando levantei um pouco a cabeça, ele se aproximando como uma bala. Mas, dessa vez, deu uma freada brusca, balançou a dianteira e a traseira de um lado pra outro da pista e, controlando-se em seguida, a velocidade foi diminuindo. E o ronco foi ficando grave, como se o motor estivesse impedindo seu som brutal de sair. Veio se aproximando cada vez mais devagar, contido, até atingir aquela velocidade mínima possível a um automóvel. Abaixei-me e escondi totalmente o corpo atrás do muro baixo. Segurei a respiração quando o carro chegou o mais perto possível. Notei que o motor parou de funcionar. Silêncio. De onde eu estava, abaixado, não dava para ver quem o guiava. O bairro era agora todo silêncio, como deveria ser.

Não havia brisa, as folhas das árvores e as flores do jardim estavam inertes, e fazia um calor sufocante. A mulher não abriu a janela dessa vez. E eu não fazia a mínima ideia de se o motorista, fosse lá quem fosse, ainda estava dentro do veiculo ou se havia decido. Arrastei-me bem devagar e alcancei a grama sob uma árvore do jardim da casa alheia e vazia, ficando quieto atrás de um arbusto. Agora eu olhava por trás da folhagem. Daria para escapar correndo, caso ele viesse ao meu encontro. Demorou um pouco. Ouvi então seus passos se aproximando, depois um som diferente de sapatos sobre a grama. Parou. O som agora ela o de ele voltando, abrindo a porta do veículo e a batendo sem força alguma. Parecia não ter pressa. Quando deu partida no motor, eu já havia corrido e já ia bem longe, e começou a chover muito. Choveu sem parar, até a manhã seguinte.

Marco Antonio, 2014.