20.1.19

PEIXES SOB A SUPERFÍCIE



Num dia chuvoso qualquer, um cachorro mordeu a perna de uma criança. O pai saiu com um porrete, mas o cão fugiu, dobrando a esquina, mais rápido do que os olhos puderam perceber. E todos ficaram ali, fazendo volume, observando o pai do menino com um porrete na mão dando voltas em torno de si e em busca do cachorro, enquanto estava lá a criança sentada chorando na calçada, a palma da mão sobre a ferida. 

Quando a chuva caiu de vez, o dono da padaria pulou veloz o balcão, pegou o menino nos braços e o levou para dentro. Mas o pai continuava rodando como um tonto, tentando em vão encontrar o animal fujão, enquanto a criança permanecia chorando nos braços do padeiro. Eu jamais havia visto alguém tão perdido. 

A mãe não estava lá, dizem que estava viajando. Comenta-se que fugira com outro, um amante,  fazia quase duas semanas, é o que se comentava. Mulher outrora muito bonita, casou cedo e teve esse único filho já tardiamente. O marido, um homem cumpridor dos seus deveres com a família e trabalhador; e, por isso mesmo, ninguém encontrava razões, afora as do coração, para ela ter esse tal amante, bem como nunca se viu os dois juntos ou coisa que o valha.

Mas o certo é que ela não estava lá quando a criança fora atacada pelo animal; apenas o pai com um porrete na mão e olhos perdidos mirando coisa alguma à procura de um cão para não se sabe mais o quê.

O dono da padaria puxou o pai pelo braço e o levou para dentro. Precisava que alguém o fizesse, pois a chuva engrossara muito. Coitado do pobre, todo molhado, porrete na mão à busca de um cachorro que ninguém poderia saber onde estava. Foi dona Esmeralda, uma mulher muito gorda, quem o fez perceber, aos gritos, que a criança estava com a perna sangrando e a chorar, precisando ser levada para fazer um curativo, tomar vacina, algo assim, coisas que só o pai poderia fazer naquele momento. 

Então ele pegou o filho nos braços e o colocou no carro, saindo em disparada para o hospital. A chuva não parava de cair. No bar, ao lado da padaria, os homens voltaram ao baralho.

No meio da tarde do sábado, o pai voltou, mas sem o filho. Deixara a criança de sete anos na casa de uma parente e apareceu sozinho. Mas tão logo estacionou o carro na garagem, foi direto para a casa amarela. E daí o desentendimento com o dono do cachorro, agora que já se sabia de quem era o animal. O filho provavelmente contara tudo, que estava atravessando a rua e, sem mais nem menos, o cachorro da casa amarela viera em disparada atacá-lo. Os cães são assim, eles aparecem do nada e avançam sobre qualquer vivente sem razão. Mas um pai não quer saber da falta de racionalidade dos animais quando um filho é atacado.

Não se sabe como foi a suposta discussão, pois estavam apenas os dois - o viúvo, dono do cachorro, e o pai do menino. O velho da casa amarela veio a falecer no meio da noite, vítima de um derrame. Alguém percebeu a luz da varanda acesa um pouco antes da meia-noite. O velho sempre a apagava antes de ir dormir. Dois vizinhos foram lá, deram um jeito de entrar e se depararam com aquele senhor paralisado na cama. Levado ao hospital, logo veio a falecer.

No domingo, por volta das dez horas da manhã, chegaram os parentes do falecido, um monte deles, uma gente muito estranha e saída não se sabe de onde. Ninguém nunca os tinha visto. Um deles, muito nervoso e aborrecido, cabelos volumosos e brilhosos, como que untados com óleo, jaqueta preta de motoqueiro, tatuagens em ambos os braços, jurou vingança e fez cara feia, falando impropérios para os curiosos. No meio da tarde, num bom carro do ano, chegou o chefe. Era o chefe, pois o reverenciavam com um gesto de cabeça quando ele passava, terno e óculos escuros, botas bem lustradas, manco de uma perna. Embora visivelmente manco, era como se não fosse, pois os demais desviavam o olhar.

Após o funeral, ocuparam a casa do falecido e também a do pai do menino. Ninguém ousou fazer uma reclamação sequer, nem mesmo os amigos dos donos dos imóveis. Dali em diante, tudo mudou. Vários moradores do local, os que podiam, foram mudando para outro lugar. Mais e mais estranhos chegavam, dia após dia, sempre em grupo, comprando tudo para ali se instalarem definitivamente com suas mulheres e filhos.

Não se sabe por quais valores, mas o certo é que adquiriram os bares, a padaria, a mercearia grande, a mercearia pequena, a pousada, as duas farmácias, o posto de gasolina, além de prédios e casas para moradia. Veio até um outro padre em substituição ao antigo. São muito católicos, pelo que se percebe, e enchem o templo aos domingos. Os daqui não frequentam mais. 

O chefe mora na casa amarela. É um entra e sai constante, mesmo tarde da noite ou nos finais de semana, exceção para os horários de celebração na igreja. O cão do velho - aquele que mordera a perna do menino - está sempre na calçada em frente, deitado e atento, como que guardando e vigiando a entrada. E late, levantando-se ameaçadoramente, quando um estranho passa.

Fico a pensar sobre onde estavam todos eles antes do incidente com a criança. De qual lugar vieram para invadir nosso lugar e nossas vidas? Imagino que, de alguma forma, estivessem sempre prontos para emergir, como peixes nadando sob a superfície.


Marco Antonio. 

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