20.1.19

ESTÁ NA HORA DE FECHAR



O mundo parecia rodar ao meu redor quando levantei naquela manhã fria de agosto. Eu havia bebido muito na noite anterior e ainda havia cheiro de cerveja na roupa e em toda a casa, e a visão era de garrafas espalhadas pelo chão da sala e por cima dos móveis. Lá fora, caia uma chuva fina e constante, nem ruído fazia, de tão fina que era. Olhei pela janela, abrindo um pouquinho a cortina. A luz doía nos olhos, fazendo a náusea vir de lá do fundo do estômago.

Deu apenas pra saber, de relance, que a rua estava vazia, apenas água fina escorrendo pela calçada. Então eu fui até o banheiro e tomei um longo banho. A água pesada e forte sobre as costas; os olhos fechados, um zumbido fino na cabeça, a náusea, e o ruído do impacto da água no piso escorrendo pelo ralo. Já menos sonolento, fiz um café, Deus sabe como, e dormi o resto do dia.

Quando já  noite, ainda a mesma chuva fina caindo lá fora, troquei de roupa e fui até a uma lanchonete próxima. Pedi um daqueles sanduíches imensos e gordurosos. Sentei-me numa mesa bem afastada, embora o lugar estivesse vazio. Ao fim -  parecia estar novamente vivo -, o dono do estabelecimento perguntou o que eu ainda estava fazendo ali, e foi logo dando ordens de ir embora.

- Está na hora de fechar!

Ao voltar, o mais depressa que pude, não vi uma única alma pela frente, embora não fosse tão tarde assim. A rua estava deserta, as demais casas com as portas e janelas fechadas contra o frio e a umidade. Entrei, liguei a TV, estava passando notícias, e fiquei ouvindo a apresentadora, enquanto limpava a sala de todas aquelas garrafas da noite anterior. Havia muitas garrafas e latas de cerveja, mas também algumas poucas de vinho, uísque, vodca, até de rum havia também.

Passava no canal uma longa reportagem sobre a mais recente crise. Deitei-me no sofá e  tentei prestar atenção ao conjunto confuso de informações e declarações de autoridades do sistema financeiro, um desfile interminável de empresários, ministros, governadores, líderes políticos, economistas, consultores e palpiteiros falando pelos quatro cantos do mundo. Estranhou-me entrevistarem também autoridades militares e religiosas. Aquilo havia explodido, ao que parece, num único dia, talvez só a partir do turno da tarde, enquanto eu dormia, naquele dia em que eu havia dormido tanto. E, dada a surpresa geral, sem maiores avisos. Mas lá fora parecia ir tudo bem. Pelo menos, entre a minha casa e a lanchonete, eu não vi nada de estranho, pessoas correndo ou desesperadas, nem cães latindo. Aliás, não vi quase ninguém, essa é a verdade. E passo a entender o dono da lanchonete.

- Aquele imbecil a comer hamburguer, ovos fritos, queijo e alface dentro de um pão imenso num dia assim. - Deve ter pensado isso.

Tentei me situar, mas havia ainda muitos ecos da noitada anterior que impediam qualquer esforço para concentrar-me no volumoso dos fatos. Eu tentava entender a reportagem e, ao mesmo tempo, relembrar os acontecimentos da noite anterior. Esforçava-me pra recobrar alguns detalhes escondidos não sei onde, e era difícil saber quais exatamente foram as pessoas que estiveram ali comigo. A memória, severamente confusa e comprometida, bem mais fácil então  prestar atenção ao programa jornalístico na TV.

Dava a impressão de uma grande emergência, quase uma daquelas calamidades bíblicas de gafanhotos sobre as lavouras. Passavam videos profissionais e amadores. Um deles mostrou um grupo enfurecido de motoristas de caminhão invadindo um posto de gasolina. Em seguida, imagens aéreas de um congestionamento gigantesco numa rodovia em São Paulo. Acidentes automobilísticos envolvendo centenas de carros, aeroportos fechados, lojas de alimentos invadidas em Curitiba. Fúria nas favelas, medo nas ruas centrais dos grandes centros, caos no Rio e outras capitais do país, EUA, México, China. Em Londres, a coisa parecia bem pior. Deus do Céu, o que era aquilo, afinal?

Fui até a geladeira e abri uma cerveja. De volta ao sofá, cobri-me com um cobertor. Foi o suficiente. Cai no sono mais uma vez.

De madrugada, ouvi batidas fortes na madeira da porta e acordei de um sono sem sonhos. Deu para ouvir uma voz suplicando, mas o som da TV a suplantava. A TV iluminava as paredes da sala com intensidade variada de brilho, meia-luz e sombras se alternando. O som das batidas misturava-se à voz monótona de uma mulher em oração num programa religioso, aqueles programas de igrejas, seitas e seus pregadores. Estava muito frio e sentia-me confortável sob a coberta grossa de lã. Não levantei. Tive medo. Esperei até as batidas cessarem, a respiração contida, os olhos fixos na porta da sala

Mas quem lá estava, seja quem fosse, poderia até ser uma amigo, se foi, restando apenas a voz monótona de uma mulher de meia-idade em oração na tela.

Ela repetia sem parar uma evocação minimalista ao Senhor. O olhos estavam voltados para baixo, e um véu branco encobria boa parte dos volumosos cabelos grisalhos que não chegavam a tocar os ombros. Aquela repetição - calma, lenta e cadenciada - durou mais uns dois minutos. Era tranquila. E o teor era de agradecimento, puro e total agradecimento por todas as coisas e dádivas neste mundo. Ao seu término, um silêncio breve e solene, seguido de imagens de um  imenso jardim de margaridas brancas iluminadas pelo sol. Nenhuma música de fundo, nenhuma legenda ou qualquer mensagem posterior.

Lá fora,  o leve som da chuva batendo finamente na calçada, e que agora se fazia ouvir.

A cortina da janela estava aberta e dava para olhar através de parte da vidraça. E eu vi enormes bolas de fogo caindo do céu. E tudo se iluminou por inteiro.

Marco Antonio.

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