20.1.19

TWIN PEAKS REVISITADA



Passo a narrar fatos alarmantes, cujas origens antecedem os acontecimentos aqui relatados, e cujas implicações estão além deles.

(...)


O ventilador de teto da sala estava na velocidade mínima e fazia um ruído agradável aos ouvidos dela. Abaixo, sobre o tapete vermelho, Laura fazia as lições da escola totalmente recurvada sobre a mesa-de-centro; a TV ligada, um pouco mais à frente, quase inaudível.  Era assim que estudava, embora não parecesse nada confortável, pernas cruzadas, livros no chão e o caderno sobre a mesinha. Estava no último ano do ensino médio e o foco era uma vaga numa universidade. Pretendia ser arquiteta, gostava de artes e tinha habilidades para desenho. Havia por trás  o incentivo do pai, pois engenheiro. Era filha única e adorada. 

Mas ela tinha que encurvar muito a coluna para poder escrever sobre a mesinha, considerando a estatura. Uma moça alta e esguia. 16 anos apenas. Estava naquela fase em que a beleza feminina começa a ficar viçosa, com jeito de mulher nova se apresentando ao mundo.  Seus longos cabelos castanhos, pele branca e lisa, e um andar que chamava atenção ao passar na rua. 

Já passava das nove da noite, estava sozinha, os pais haviam saído para o jantar do mês do Lions Clube. Tudo trancado e muito seguro. Na TV, um filme qualquer, só pra constar. E de cima vinha a brisa leve do ventilador no mínimo. Laura consultou rapidamente o dicionário e o colocou de volta sobre o tapete, voltando ao exercício de redação. 

Foi quando ela notou que a brisa cessou de repente. Olhou pra cima e viu que as pás do ventilador haviam parado. 

Laura...

Ela ouviu aquela voz gutural.

Ao desviar a visão do ventilador parado, e buscar o lugar de onde vinha o chamado, ela deparou-se com um homem de rosto suado no outro extremo da sala. Seus cabelos eram longos, uma mistura de pretos e  grisalhos, ensebados. 

Ele já se movimentava, e vinha bem devagarinho, andando em círculos em torno do tapete, e cada vez se aproximando mais e mais, a cada volta que dava. Seu movimento tinha um quê de coreografia, como se fosse um ritual para chegar até ela. Usava um blusão sintético preto e vulgar de motoqueiros de estrada. Estava com o zíper aberto até o meio e mostrava o peito nu, onde se via a tatuagem de um coração vermelho.

Ela não ousou perguntar como ele havia entrado ali. Não havia como ter entrado, não havia.  Estava tudo trancado, havia alarmes, câmeras, todas essas coisas de segurança.

E ele veio se aproximando lentamente, não andava ereto, mas com os joelhos um pouco dobrados, meio agachado, andava desse jeito, mas não balançava o corpo. Os braços permaneciam abertos pra frente, como para pegá-la. A boca sempre aberta. Muito aberta, ao máximo. Mas não ria. Nada daquilo poderia lembrar sorriso ou mesmo um riso de maldade. Era a pior imagem que se  poderia ter de uma boca muito aberta vindo em sua direção.

E quando o homem chegou mais perto, ela viu melh or e nitidamente o quanto era vermelha a tatuagem em seu peito, quase cor de sangue. Um coração do tamanho de um punho tatuado no peito.

Foi quando ela percebeu.

De pronto, percebeu o cheiro dele. Aquele cheiro era conhecido. Cheiro de perfume misturado ao suor. O perfume lembrava muito o de uso do pai. 

Neste ponto, o homem já estava muito perto e poderia tocá-la, se quisesse. 

NÃO! PELO AMOR DE DEUS, NÃO! MEUS JESUS, NÃO!

Ela gritou. Fez um enorme esforço. Mas os gritos não saiam. E a visão foi turvando. Aquela bocarra aberta foi esmaecendo e se misturando a uma névoa envolvendo a sala inteira, até ela não poder mais enxergar nada.

O homem arrancou uma página do caderno, pegou uma caneta e começou a escrever. Escrevia bem devagar, tão devagar que parecia estar desenhando em vez de escrevendo. Alguma coisa ele escrevia ali em total concentração e cuidado nos detalhes, a bocarra aberta, quase colada ao papel, a respiração sendo jogada contra a folha de caderno escolar. 

Quando Laura voltou a si - não havia mais nenhuma névoa, e a visão estava límpida e nítida -, deu-se conta da possibilidade de poder fugir e escapar, pois o homem estava a escrever num papel de caderno, e parecia não se importar com ela, era a impressão que dava. Ela poderia fugir, se quisesse.

De imediato, ela mirou o corredor que dava para os quartos e correu. Entrou no primeiro quarto, trancou a porta, abriu a janela e pulou. E correu o mais que pode. Mas não o suficiente, pois algo a puxou fortemente pelo pescoço, e seu corpo foi jogado com força extrema para trás. E, neste  exato momento, ela ouviu um medonho urro gutural daquilo que a impediu de seguir. Talvez, se já tivesse ido ao inferno, pudesse ouvir algo semelhante e pavoroso vindo das profundezas. Mas, do fundo do seu cérebro, das memórias de pesadelos de desde a infância,  agora retornados como um flash sonoro para a superfície consciente, ela soube já ter ouvido aquela monstruosidade.  

* * *

Os alarmes dispararam em seguida. Vieram todos, os pais foram chamados lá do Lions Clube,  seguidos dos membros mais próximos da família. Acumulou-se uma enorme aglomeração de vizinhos. Sem demora, os policiais. Aos poucos, foram também chegando corujas a se alojarem nas árvores próximas. 

Os policiais encontraram  a janela de um quarto e a porta da sala abertas. Na sala, os móveis e objetos pareciam no lugar e arrumados. No centro da sala, livros espalhados num enorme tapete vermelho. O ventilador de teto estava ligado, as pás girando lentamente na velocidade mínima, a TV ligada no volume baixo. Laura não estava lá. Os pais caíram em desespero, a mãe saiu andando como uma louca em volta da casa a gritar o nome da filha.

Fizeram buscas na vizinhança. A polícia levou o smartphone da garota, cadernos, livros; deram uma busca completa nas gavetas, armários, coletaram provas. E olharam o principal, as imagens das câmeras de segurança. No entanto, não encontraram sequer um único registro gravado sobre aquela noite no sistema. Apenas ruído e estatística. 

De pronto, o delegado descobriu, no aplicativo de mensagens do celular de Laura, trocas de recados entre ela e um traficantezinho da cidade. Não eram somente mensagens de pedido e fornecimento de drogas, mas também declarações de amor, fotos, marcação de encontros secretos, juras, promessas. 

Pegaram o rapaz ainda naquela noite. Era um vagabundo qualquer de boné de aba reta e correntão no pescoço. Segundo um jornal no dia seguinte, "um pobre coitado da periferia". Mas já era maior de idade, 20 anos. Não tinha álibi, e nem quis falar nada. Apareceu um advogado de terno gasto. Não havia provas de que tivesse feito algo à garota. Afinal, fora encontrado em casa, umas três horas após o início das buscas, onde morava só. Mas havia drogas por lá, não muito, mas o suficiente para incriminá-lo como traficante. A PM o conhecia bem. No celular dele, troca de mensagens com Laura, vídeos íntimos de sexo, bebedeira, bacanal, e mais uma terceira pessoa.  Ménage à trois. E muita droga. 

Foram atras do terceiro no dia seguinte. Era um bem-de-vida, empresário, um tipo playboy bissexual, casado. Gente bem posicionada. Aquele mesmo jornal insinuou que pudesse ser ele o autor de não se sabia exatamente o quê, Mas, apesar da imprensa, a coisa ficou um pouco mais difícil entre a polícia e o terceiro. Apareceram advogados de todos os lados, bons ternos, gente importante e influente. E dinheiro. Bem como ninguém quis arriscar fazer acusações sem provas, mesmo porque a moça em causa estava apenas sumida. Agora, já se sabia, uma doidinha sumida.

- Essa dona é maluca.  - disse o terceiro - Vocês não perceberam ainda? É muito estranho a família não saber nada da má fama dela. Vocês não viram os vídeos? - Enquanto, do outro lado da mesa, o delegado tomava um xícara de café preto para tentar controlar o sono de uma noite perdida. 

A polícia tinha, diante de si, apesar da gritaria dos pais, apenas uma menor consumidora de drogas fugida de casa. Bem provavelmente, logo pela manhã de mais um dia, quem sabe, seria encontrada com alguém por aí. Ou voltando meio bêbada. 

Não demorou muito para saberem a resposta.

Dois dias depois, no raiar do sol, um velho agricultor, dono de uma propriedade próxima à cidade, encontrou um corpo enrolado em plástico transparente jogado na beirada de uma lagoa. Ao chegarem ao local, depararam-se, sob voltas e  voltas de plástico, com o corpo nu de Laura.

Estava repleto de hematomas, cortes e deformações provocadas aparentemente por mero uso de força física. Braços, pernas, ossos, dentes quebrados. Quando o pai a identificou, urrou como um louco. Foram obrigados a sedá-lo. O delegado admitiu nunca ter visto algo daquela natureza, apesar de sua passagem profissional por capital violenta.

Levaram o corpo para o IML. Nada daquilo que se vê em séries policiais de TV, nada de sinais e pistas deixadas por serial killers cerebrais fazendo desafios e corridas de gato-e-rato com investigadores obcecados. Apenas a violência exposta e brutal, feroz e bestial. Com uma única exceção, talvez. 

Na cavidade bucal, uma folha de caderno escolar cuidadosamente dobrada. Nela podia-se ler, numa caligrafia entre rústica, infantil e quase desenhada, uma mensagem escrita em caneta azul:

EU SEMPRE ESTIVE COM ELA. 
ASSINADO: BOB.


Marco Antonio

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