20.1.19

OS CARAS DA MESA AO LADO

“Fora da ciência, o progresso não passa de um mito.”
John Gray - Cachorros de Palha. 


Eu os vi naquele restaurante, estavam numa mesa bem próxima à nossa, em número de quatro. Lembro bem deles. Cheguei a comentar com o meu amigo:

- Aqueles caras ali naquela mesa. Olhe pra eles…

O meu amigo disse não ter notado nada de anormal, nem nas roupas, na aparência ou nos gestos, e achou engraçada a minha desconfiança, seja lá qual fosse.

- Eles estão bebendo cerveja da mesma marca da nossa. - ele brincou e encheu meu copo.

Eu e meu amigo estávamos ali para trocarmos ideias sobre a compra de um imóvel. Ele entendia do ramo. Na verdade, o seu trabalho. Eu o convidara para uma consulta informal.

- Compre agora! - deu aquele tipo de opinião de profissional - Os preços vão subir. Vão subir muito, pode acreditar em mim. O mercado imobiliário está aquecido.  A economia está de vento em popa, as expectativas são de manutenção do crescimento e de uma demanda crescente. Quem tem dinheiro está comprando tudo. Se esperar, meu amigo, pode perder uma ótima oportunidade ou vir a comprar bem mais caro daqui a um mês.

Ele era bom naquilo, inteligente, bem informado, sempre certeiro. E eu me decidi de imediato. Além disso, éramos amigos, bons amigos, velhos conhecidos. 

- Fechado! O negócio será fechado logo pela manhã - Prometi.

Terminamos o jantar na certeza de ter decidido fazer a coisa certa. Na saída, passamos pela mesa dos quatro, e nenhum deles deu pela nossa presença. O que parecia ser o mais velho falava pausadamente, enquanto os demais ouviam com atenção.

No dia seguinte, um pouco antes da hora do almoço, quando cheguei em casa, depois de pegar um trânsito totalmente caótico, encontrei a minha mulher tentando, em vão, sintonizar algum canal de TV.

- Só chuvisco, você está vendo? Todos os canais estão assim - ela comentou com ar de interrogação, parada no meio da sala, mostrando o controle remoto pra mim.

- Pode ser o cabo folgado. Ou o transmissor queimou. Meu celular também não tem sinal.

- Fechou o negócio? - ela perguntou. Havia esperança em seu rosto. Mas também apreensão

- Não deu...

- Deus do Céu! - Ela desabou sobre sofá da sala, deixando cair o controle remoto no chão. - Perdemos a maior oportunidade de nossas vidas. Afinal, o que aconteceu com você? O que deu em você? O que deu em você? - Ela repetia gritando sem parar - O que deu em você?

Três dias depois, nenhum de nós sabia ainda o que estava acontecendo, nem quanto tempo duraria. No início da noite, carros da polícia fecharam as avenidas principais da cidade. As emissoras de rádio, a única forma de saber o que acontecia lá fora, nada diziam além dos pronunciamentos oficiais. Estávamos no escuro, como se diz, sem telefone, sem celular, sem internet. Uma nota oficial anunciou o fechamento das escolas, repartições públicas, dos estabelecimentos comerciais e parques. Emitiram uma ordem para que ninguém saísse de casa, exceção para casos de emergência médica. Apenas os hospitais ficariam abertos, sob forte proteção da polícia e do Exército. Sem explicação alguma, apenas ordens.

Os dias seguintes foram como um rolo compressor. Falta de energia e de água; saques, pessoas correndo pelas ruas com pacotes de comida e enlatados, dava para ver da janela de nosso apartamento. Caos e violência. Passamos a sentir muito medo. Minha mulher provavelmente já havia esquecido o fato de eu não ter feito o negócio de nossas vidas.

No entanto, apesar do caos social e humano que avistávamos da janela, além das ordens oficiais pelo rádio com proibições de toda natureza, não ouvimos um único sinal de explosão ou ataque militar. Raros eram tiros aqui e ali.

Para a nossa sorte, por um tempo, teríamos um bom estoque de comida e enlatados, e só havia nós dois em casa. Mas tínhamos receio de que os vizinhos viessem. Não ousávamos sair ou abrir as portas do apartamento, nem as janelas, apesar do calor sufocante. Não foi fácil permanecer ali daquele jeito. Mas qual seria a alternativa?

A minha mulher deixou de lado aquele seu nervosismo inicial, talvez por ter percebido, antes de mim, o poço onde estávamos mergulhando, embora não soubesse de nada sobre o que havia causado tudo aquilo. Mantinha, para a minha perplexidade, uma serenidade nos gestos e nas palavras. Preparava a comida, respeitava metodicamente os horários das três refeiçoes, arrumava a mesa e a nossa cama, colocava os objetos de volta no lugar. Vê-la varrendo a sala dava um pouco de esperança. O mundo lá fora desmoronando, e ela varrendo o quarto, colocando com cuidado as roupas na gaveta certa. As últimas imagens daquele mundo ao qual estávamos acostumados desde criança, e que ainda tento carregar, são da minha mulher tentando manter as coisas em ordem.

Depois de alguns dias, não  teve mais jeito. Saímos à procura de água e comida. Fazer isso e fugir do inferno da cidade. Nessa fuga da metrópole, grupos perseguiam grupos, um mundo de pessoas fugindo e com medo de tudo, e ninguém sabia dizer a razão de termos chegado naquele ponto. Simplesmente não houvíamos respostas concretas, com a exceção de teorias malucas.

Para nossa infelicidade, nos perdemos um do outro. Nem mais uma vez a vi, e nem lembro de como ela se afastou e sumiu. Qualquer traço de esperança se esvaiu. Não era mais o mesmo mundo.

Agora, anos depois,  nos organizamos em tribos. Tribos rivais e sistematicamente agressivas umas com as outras, exceção para alguma aliança temporária contra outro agrupamento. Mas dizem que já temos alguma normalidade, se é que isso pode ser chamado de normalidade. Em verdade, um caos violento ao qual nos acostumamos com o tempo. A parte população que sobreviveu à fome e às doenças dividiu-se em espécies de tribos com nomes estranhos e lideradas com mão de ferro. Havia também os desgarrados, gente que não aceitou ficar sob comando de um pequeno tirano qualquer e saiu a aventurar-se por ai, enfrentando um dia incerto após o outro.

Passei a vida ouvindo falar da capacidade humana de adaptação. Sim, nos adaptamos. O tempo foi passando, fui deixando pra lá. De vez em quando, raramente, tenho um sonho bom, as cidades erguidas, carros, semáforos, pessoas atravessando ordenadamente pela faixa de pedestres; telefones, internet, condicionadores de ar; remédios contra dor, água limpa; lanchonetes, comida farta à venda em supermercados; supermercados gigantescos e suas prateleiras abarrotadas com uma variedade infindável de opções. Sonho ainda com a casa arrumada, a mesa posta, minha mulher fazendo todas aquelas coisas em seus mínimos detalhes, as roupas na gaveta certa, talheres, xícaras, a TV ligada, o sofá da sala, as pequenas coisas da ordem e da rotina doméstica. 

Recentemente, por uma sorte de uma em um bilhão, reencontrei aquele meu amigo do mercado imobiliário. Coitado, um trapo humano, quase irreconhecível. Eu também - ele disse - quase irreconhecível. Perdemos também aquelas maneiras gentis de esconder a verdade sobre a aparência envelhecida, desgastada ou doentia de um amigo após muitos anos distantes um do outro. Aliás, foi muito rápido como todas as formas de convivência civilizada se deterioraram. Afinal, não faz tanto tempo assim.

- Você lembra da última vez em que conversamos? Foi naquele restaurante perto de um shopping enorme. Era muito bom aquele lugar, não era? Aliás, tudo parecia ser muito bom... - Eu disse.

- Sim, lembro. A parte do bar era muito bonita, sempre iluminada com cores vivas por trás das garrafas nas prateleiras.

- Era um lugar muito bom!

- Lembro também de você ter apontado para os caras estranhos. Você lembra disso?

- Sua memória ainda está boa, meu amigo, apesar de tudo, apesar de seus cabelos já quase nem existirem mais.

- Mas eu não percebi nada neles. Eu juro! Juro que não percebi…

- Eu sei disso. Mas talvez tenha sido apenas um engano meu. Só um engano, talvez… e não poderíamos ter feito nada... então... - eu sorri.

-  Não, não poderíamos.

Foi uma conversa rápida, o grupo dele se aproximou e logo nos afastamos. Não perguntou sobre a minha mulher, nem eu pela família dele. Neste ponto, fomos muito gentis um com o outro. E não nos vimos nunca mais.

Marco Antonio.

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