20.1.19

POMADA NO ROSTO


A balconista entregou o medicamento dentro de uma cestinha azul e pediu para dirigir-se ao caixa. Ele tirou a carteira do bolso e pagou com cartão de débito.

Já dentro do carro, distorceu a tampa da bisnaga e passou a pomada no lado direito do rosto, guiando-se cuidadosamente pela imagem refletida no retrovisor interno. Não tinha cheiro algum, mas deixou uma oleosidade nos dedos. Antes de ligar o motor, limpou insistentemente a mão na calça e, só depois, saiu do estacionamento. Aproveitou a noite tranquila para dirigir pelas avenidas largas, tranquilas e iluminadas da orla. Já era tarde. Embora fosse verão, não havia movimento algum, bares e restaurantes fechados. Sem querer, repetidamente, passava a mão no rosto e sentia a oleosidade incômoda da pomada. Tornava a limpar os dedos no jeans, antes de voltar a segurar novamente o volante com as duas mãos. As horas foram rolando noite adentro e o relógio do veículo já mostrava mais de três da manhã. O sono não viera. Então achou melhor ficar circulando pela beira-mar, os vidros abaixados, a brisa amena da madrugada contra o rosto. 

Não demorou muito para avistar os primeiros raios de sol e, aos poucos, o avanço da manhã. Continuava guiando em ritmo lento, já agora pelo centro comercial. Mas não havia ninguém circulando nas ruas. Pensou, de início, que o relógio do carro estivesse errado. Mas, com o passar de quase uma  hora,  sem avistar ninguém, a cidade completamente vazia, os carros parados, as portas dos estabelecimentos fechadas, foi tomado por aquela estranheza de que algo errado estivesse acontecendo, não no mundo aparentemente vazio e ainda em sono profundo lá fora, obviamente nada com a realidade em si, mas com ele. Teve a nítida sensação de algo errado consigo próprio. Aquilo provocou-lhe um sobressalto, quase um pavor, e passou nervosamente a mão no rosto sem querer, sentindo a pomada grudando mais uma vez na palma da mão. Foi então que teve a ideia de ir para a farmácia onde havia comprado o medicamento. Era daquelas vinte e quatro horas por dia e sete dias por semana sem fechar. Teria que estar aberta e pessoas por la.

Estava aberta, as luzes internas acesas. Estacionou o carro, mas não o desligou de imediato. Ficou observando com cuidado se havia algum movimento lá dentro. Ninguém entrava, ninguém saia. Decidiu então abrir a porta do veículo. Fazia muito calor do lado de fora e o sol forte do verão feria a sua visão.

Ao entrar no estabelecimento, deu para ver a balconista que o atendera na noite anterior, enquanto a moça do caixa teclava atentamente numa calculadora. 

- O que o senhor deseja? - A balconista perguntou. Era uma negra de compleição atarracada e com jeito mal humorado.
- Lembra de mim? Você lembra de mim, de ontem à noite? - Ele indagou, nervosamente.
- O que o senhor deseja comprar?
- Por que não há outros clientes aqui?
- O que o senhor deseja pedir, afinal, ou só veio para perguntar isso? Há mais gente, além do senhor, para atender. O senhor não está vendo?

Ele virou-se.  Havia três pessoas atrás esperando para serem atendidas. A mais próxima, um homem gordo, parecia estar com pressa e o olhou com desprezo. Ele passou mão no rosto e sentiu mais uma vez o incomodo da pomada oleosa. Esfregou nervosamente os dedos na calça, enquanto a atendente esperava com uma cara feia, os braços dela jogados sobre o balcão. 

Sem respostas, andou de volta até porta. Havia enlouquecido. Foi o que pensou. 

Lá fora, nenhum carro a passar. Olhou fixamente em volta. Abriu e fechou os olhos para ter certeza daquilo que estava vendo. Não havia dúvidas, não estava louco, ele concluiu, pois não se via uma alma sequer circulando, apenas umas poucas pessoas dentro da farmácia. Somente a ausência completa de pessoas e carros do lado de fora, mas o resto estava perfeito, os prédios, os sinais de trânsito, o letreiro das lojas, conhecia aquilo muito bem, tudo no seu devido lugar. Lá dentro, as pessoas comportando-se normalmente. Não poderia ser alucinação. Ou, se fosse, seria um efeito colateral extraordinário da pomada?

A sinaleira da esquina fechou. Decidiu ficar ali mesmo na porta esperando alguém passar. O sinal abriu um minuto depois. O homem gordo foi até o caixa, seria o primeiro a pagar e logo sair. Nenhum carro transitando na avenida larga de três pistas. O gordo colocou a carteira no bolso e caminhou lentamente carregando um saco plástico contendo o que parecia ser varias caixas de remédio. Passou por ele lançando mais uma vez aquele olhar de desprezo. 

- O que está acontecendo? - Perguntou insistentemente, seguindo o outro pelo estacionamento. 
- Você não deveria andar debaixo do sol com essa coisa aí em seu rosto sem proteção. Tem um aspecto muito feio, muito desagradável. Você nem deveria sair por aí com essa coisa horrível. 
- O que está acontecendo? Você vê o mesmo que eu vejo? Não há ninguém!
- Sim! Claro!

O gordo desvencilhou-se e entrou no carro, mantendo os vidros levantados. Deu a partida, manobrou, dobrando a esquina. O sinal estava aberto. Um outro cliente da farmácia passou pela porta, entrou no carro e seguiu adiante antes do fechamento do semáforo.

Sob o sol quente, a pomada passou a incomodar muito, uma queimação na pele e nos olhos, o que o fez entrar no carro, ligar o motor, e o ar-condicionado no frio máximo. Pegou a caixa da pomada e começou a ler a bula à procura de algum efeito colateral para explicar o que via. Nada. Apenas possibilidade de irritação e algum queimor, estava escrito. De dentro do veículo, a temperatura já bastante amena, não mais sentindo incômodo algum no rosto, olhava pela janela a  observar as pessoas entrando e saindo da farmácia, duas, três, quatro, cinco, dez, vinte e cinco, muitas, uma farmácia movimentada. Mas somente elas pareciam estar nas ruas, somente elas. Só Deus sabe o porquê.

Tentou conversa com um ou outro, mas olhavam para o seu rosto e o evitavam. Saiu dali e voltou a circular pelas avenidas completamente silenciosas, sem avistar ninguém mais. E o sol já estava bastante baixo, a tarde avançando lentamente sobre a cidade. Pela indicação do médico, estava se aproximando a hora da outra dose.

Marco Antonio.

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