20.1.19

PERMANÊNCIA


"Você nunca está só"  - Hubmann.


Pediu uma bebida e recostou-se em um balcão recuado. Minutos depois, ela chegou. Ela e mais três amigas. Chamou-lhe a atenção o azul do vestido e o verde dos olhos. Das quatro moças, somente ela sorria; e, mesmo sob o som alto da música que tocava bem ritmada, dava para ouvir a risada aberta e ampla que dela vinha. Passado um quarto de hora, ela não parecia tê-lo notado de modo algum, mesmo quando seus olhos abarcavam o balcão onde ele se debruçara.

Depois foram só pensamentos.

Começou quando ele, ao entrar numa livraria, pegou um livro e mirou a capa, o título e o nome do autor. Em seguida, abriu-o numa página interna e, ainda no primeiro parágrafo, imaginou o que ela pensaria sobre o que estava escrito ali na folha aberta. Após o que, comprou o volume e o leu lentamente, intercalando frases e pensamentos, um processo vagaroso e constante de breves leituras e longas paradas. Não aquele pensamento reflexivo sobre o que se lê, ou a refutação da ideia exposta ou ainda a busca de alguma correlação com a realidade e com outras obras lidas. Um diálogo, não com o autor, mas com um segundo leitor imaginário a ler em paralelo as mesmas palavras, seguindo a mesma marcação das vírgulas e o ritmo das frases, uma após a outra, páginas após páginas, até o final. No fim de tudo, a certeza de que ambos haviam lido e comentado aquele livro singular.

Mas não parando por aí. Também muitos outros, por meses, uma variedade de autores, músicas, compositores, obras de arte, experiências as mais diversas, desde as meramente intuitivas e espirituais, indo até os desdobramentos de natureza religiosa, passando pelas percepções visuais, por um cabedal de viagens, amizades, relações pessoais e amorosas, sentimentos os mais diversos, sonhos, mentiras, frustrações e insucessos, alegrias e os pequenos momentos doces de vida.

Não foi sobrando sequer um pequeno espaço onde houvesse somente ele e sua alma única neste mundo. Nada daquele isolamento próprio que recai sobre cada um de nós desde o nascimento. Nem resquícios da solidão particular à todo ser humano jogado no seio da Criação. Ao seu lado, sempre presente aquela mulher de azul, olhos verdes e sorriso largo. Sempre acompanhado, antes mesmo do raiar do dia, desde o sono mais profundo e confuso das noites pesadas; desde a manhã do dia anterior;  desde muitos dias anteriores.

Estava à beira de, por nunca estar a sós consigo, isolar-se de tudo o mais.

Até o dia em que a viu novamente e de verdade. Foi quando virou o rosto na rua movimentada. O sinal lá adiante fechou -  e lá estava ela atravessando sozinha a larga avenida na faixa de pedestres, somente ela, como naqueles filmes em que se pretende marcar e alongar uma breve cena.

O momento transcorreu em câmera lenta -  pesado em seu ritmo, longo e denso em sua duração. O vento forte batia no vestido solto, não o azul da festa, mas um de várias cores alegres e misturadas em desenhos geométricos. Soprava em curtas rajadas nos cabelos negros pesados à altura dos ombros. Por detrás da cena, uma fila de carros alinhados na faixa, todos parados, um ao lado do outro, os faróis acesos, luzes intensas, os motores em baixa rotação fazendo aquele zumbido grave e constante de potência contida, e os motoristas paralisados ao volante na longa espera, enquanto ela passava, tendo para isso todo tempo que restasse neste mundo.

Quando já perto do outro lado rua, ela virou o rosto para ele;  e o mirou por um instante breve e limitado, mostrando que o  reconhecia, desejando que a visse. E, pela primeira vez, ele pode ter para si o belo sorriso a ele dirigido, agora a sua alma  liberta.

Marco Antonio.

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