20.1.19

EU JURO QUE VI


"Não ouvi o menor som, porém a presença das coisas incompreensíveis me perturbava."
There Are More Things - Jorge Luis Borges.

Na manhã seguinte, as nuvens se adensaram. A meteorologia anunciou dias fechados. Choveu muito naquelas duas semanas. Foram ruins, úmidas, embaçadas e frias. A minha rua foi aos poucos invadida por uma lama vermelha que descera das encostas e, no entrar e sair, sujava-se facilmente as roupas e a casa. A TV anunciou a ocorrência de tempestades e um fluxo intenso de umidade do oceano em direção ao interior do continente, explicando aquela invernagem em pleno verão. Num domingo, choveu durante vinte e quatro horas ininterruptas, e o rio transbordou, provocando uma enchente só comparável à de 1962. A água subiu setenta centímetros dentro de casa e ficou lama sobre o sofá, cadeiras, camas e por dentro de gavetas.

Não é fácil descrever o que se sente numa situação como aquela, quando se descobre, no dia seguinte, sob a luz de um sol que ainda não se vê, em meio à sujeira inevitável, haver coisas já irremediavelmente irrecuperáveis. Enquanto a água não desce, não é possível conhecer exatamente o que está ocorrendo, como se a nossa compreensão estivesse também submersa. Mas tem-se aquela certeza, no íntimo, de que certos móveis, objetos, papéis e fotos estão perdidos para sempre.

Após aqueles quinze dias, a chuva se foi de todo; e a cidade, de um jeito ou de outro, foi lentamente voltando à normalidade. De resto, divulgaram e arquivaram em números e tabelas as estatísticas dos prejuízos, perdas, desaparecidos e mortes. Nas mentes, a perplexidade. Um jornal reconhecidamente sensacionalista publicou uma matéria, com desaprovação imediata das autoridades, sobre certas mortes não poderem ser explicadas simplesmente por afogamento, desabamento de casas ou avalanches de lama. Havia nele umas fotos perturbadoras, contudo de pouca ou nenhuma credibilidade.  

Mas quando o sol volta a preencher o espaço com seu calor -  e o céu azul se abre iluminadando plenamente um dia após o outro -, somos obrigados a aceitar que não se pode viver o tempo todo como se ainda houvesse água barrenta do rio penetrando em tudo.

No mês seguinte, revi os amigos nos bares da orla. Da praia, avistei um belo e enorme navio branco de bandeira estrangeira navegando em águas tranqüilas.

No retorno à plena normalidade, numa dessas noites quentes do verão que havia finalmente voltado, olhando pela porta aberta, prescrutava as sombras e a penumbra lá fora. Foi de relance, muito rápido. Não sei o que era aquilo. Mas eu vi. Eu juro que vi. 

Marco Antonio.

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