20.1.19

O POÇO




Minha tia chegou com as meninas e já passava das três da tarde. Deixou as gêmeas para que minha mãe tomasse conta delas durante a noite. Estava com pressa, e meu tio nem desceu do carro, pois teriam que pegar estrada para o casamento de uma parente numa cidade mais ou menos longe dali. As meninas estavam em vestidos de cores diferentes. Uma, de azul; a outra, de carmim. Modelos diferentes também. Um com um laçarote atras; o outro, na frente. Minha tia defendia a ideia de não serem criadas como idênticas,  além do que já eram, pois bastava o fato de serem praticamente iguais na concepção, gêmeos univitelinos, igualmente loiras, cabelos lisos, pele clara, sorriso amplo, olhos castanhos amarelados, idênticas. Tinham uns três anos, Gabriela e Gardênia. Não dava pra saber quem era quem. 

Logo se soltaram a correr alegremente pelo amplo quintal. Morávamos um pouco afastados do centro da pequena cidade num sobrado antigo numa propriedade herdada do meu avô. Um quintal enorme. Gramado, jardim, hortas, um pequeno laranjal e muitas mangueiras.

- Meninas, fiquem por perto, fiquem onde eu possa olhar pra vocês duas. E não tentem subir nas árvores. - Disse a minha mãe, naquele seu tom habitual de dar ordens aos filhos.

- Sim, titia - respondeu a primeira - sim, titia - ecoou a segunda. E não paravam de sorrir.

Pouco depois, recebi ordens pra comprar pão. A padaria ficava um pouco longe, e a minha mãe  não gostava de que eu fosse já perto do anoitecer. E falou bem explicadinho para  que trouxesse mais do que de costume, pois as meninas jantariam e tomariam o café da manhã conosco. Na época, eu tinha uma bicicleta nova, uma Monark que ganhara de presente no Natal. Fui e voltei como num avião a jato. Andar velozmente de bicicleta era uma das cosias que mais gostava de fazer na infância, um dos motivos de sempre me dispor a ir comprar o pão. E fui bem veloz, pedalando num ritmo constante, só descansando nas descidas, embalado voando ladeira abaixo. Alem do que, também tinha medo de voltar já escurecendo, medo dos mendigos, dos vagabundos, andarilhos e bandidos que circulavam pelo mato, dos bêbados, loucos e de toda a família de seres que povoam a cabeça das crianças. 

Na volta, joguei o pacote de pão sobre a mesa e  vi que a minha mãe não estava na cozinha a preparar a janta. Ouvi sua voz vindo de longe:

- Gabriela, Gardênia, meninas, onde vocês estão? Meninas, onde vocês estão? 

As gêmeas sumiram. Ajudada por alguns vizinhos, minha mãe vasculhou cada pedaço de chão da propriedade e nas outras casas próximas. E, tão logo escureceu, meu pai chegou em sua velha caminhonete Ford. Quando viu aquilo tudo, ao deparar-se com a minha mãe em prantos contando sobre todos os lugares já revistados, tratou logo de apanhar cordas e uma lanterna elétrica que levava na caminhonete. 

Ao observar os preparativos do meu pai, a minha mãe gritou:

- Meus Deus, o poço! - Sua voz e seus olhos só mostravam desespero, quase terror em sua expressão - O que vou dizer para os pais delas? Ajude, Senhor!

Tínhamos um velho poço, uma cacimba, uma minação de água salobra de uns cinco metros de profundidade e revestido de pedras não trabalhadas. A boca na abertura era de mais ou menos um metro e pouco de largura, por onde dava pra passar facilmente um adulto, e o poço ia se estreitando aos poucos. Usávamos a água para lavar roupas, serviços de limpeza e a puxávamos com um balde. Tinha seu maior valor nas épocas de estiagem, quando a cisterna de captação de água da chuva secava. Nem o meu pai sabia quando e como haviam feito o poço, de tão velho que era. 

Meu pai iluminou a escuridão através da abertura e curvou-se um pouco para dentro, mas não dava para saber se as meninas estavam ou não ali só de olhar de de cima, poderiam estar sob a lâmina d’àgua, ele falou. Amarrou firmemente a corda em torno da cintura e pediu para que alguns vizinhos o segurassem na lenta descida. E foi com cuidado com a sua lanterna acesa. A minha mãe só chorava. Abracei-a em torno da cintura, dava pra sentir o tremor em seu corpo.

Não demorou muito e ele gritou, sua voz vindo de lá de baixo como se falando de dentro de uma caverna, grave e forte, repetindo:

- Não, não tem ninguém aqui. Não estão aqui. Não estão aqui. Elas não estão aqui.

A voz do meu pai ressoou em mim. - Não estão aqui, não estão aqui, não estão aqui - Esperava outra coisa, não aquilo. E veio a decepção. Eu não gostava delas. 

Marco Antonio.

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