19.7.14

NÃO, VOCÊ NÃO SABE O QUE ESTOU PENSANDO


"Não, você não sabe o que estou pensando." Aliás, não há como saber o que se passa na cabeça de outras pessoas. Você pode até tentar adivinhar. Se acertar, será como um chutar uma bola para o meio de uma floresta e, sem controle nenhum sobre a trajetória, conseguir derrubar uma fruta doce no galho de uma árvore distante. As pessoas são assim, seus pensamentos são assim, um amontoado de galhos de uma floresta fechada, onde a luz do sol pouco penetra. E, nessas florestas, coisas novas nascem todos os dias, pois as sementes caem o tempo inteiro e, dali mesmo, brotam novos espécimes, um emaranhado de plantas de tamanhos, formas e cores variadas brotando, crescendo e morrendo sem parar. 

"Não, você não sabe o que eu estou pensando." - Eu falei novamente, quando a minha mulher perguntou sobre o fato de eu estar pensativo. Ela abriu a porta do carro e saiu, logo após eu ter estacionado em frente ao supermercado. Liguei o rádio e fiquei ouvindo música de estação AM bem popular, musica vulgar e ruim. O locutor, entre uma música e outra, falava da temperatura, anunciava as horas, e lembrava que, naquela noite, haveria a importante festa na praça. Era uma festa anual da igreja. Embora fosse uma festa religiosa, tinha apresentação de bandinhas locais. Após a missa, dava-se aquela festa, nada de sacro, digamos assim.

Uns vinte minutos depois, ela voltou empurrando um carrinho com dois sacos plásticos cheio de coisas. O vento batia em seus cabelos. Eu sempre gostava de vê-la com os cabelos soltos ao vento. Mesmo de longe, dava para ver seu sorriso para mim. Eu abri o porta-malas quando ela chegou mais perto. Abri a boca dos sacos e vi que havia cervejas e uns tira-gostos, além de umas coisas de cozinha e limpeza. Na saída do estacionamento, falamos sobre a festa na praça, se deveríamos ir ou não. 

"Eu não vou pra missa, então não é certo ir para a praça." - Ela falou. Então eu argumentei que não tinha nada a ver uma coisa com a outra. "Deveríamos ir", eu disse. Ela fez um gesto de consentimento com a cabeça. Disse que iria, sim. Então, mais adiante, deixei-a no salão-de-beleza. Marcamos para pegá-la na hora do almoço.

X   X   X

Era uma manhã de sábado ensolarada. Aproveitei e fui até uma oficina para dar uma olhada nos freios. O mecânico era um cara velho e calado. Perdera recentemente a mulher para o câncer, e aquilo o havia deixado ainda mais fechado e estranho. Deu o diagnóstico dos freios em poucas palavras e anunciou o preço com total desinteresse. Eu aceitei, e ele  fez o serviço. Embora não muito simpático, ainda mais agora, era um bom mecânico, experiente, confiável e correto. Na saída, estendi a mão em agradecimento. Ele mostrou as mãos sujas de óleo e as recolheu imediatamente, e deu as costas pra mim. Todo mundo sabia daquele jeito dele e relevava. Perto do meio-dia, fui direto para o salão.
J
Chegando lá,  minha mulher não havia ainda terminado, sentada numa cadeira com alguém a escovar-lhe os cabelos. A dona do salão anunciou: "Seu amor já chegou". E pediu para sentar-me e esperar "um pouquinho". "Daqui a um pouquinho ela já estará bem bonita pra você.".

Sentei e pequei uma revista, e nem me dei conta do cara que passou por mim.

Só ouvi gritos de uma mulher e o som de vidros quebrando. Ao levantar a vista para o fundo, o sujeito já estava de volta arrastando a esposa pelos cabelos, em meio aos pedidos de "calma!" e "não faça isso!". Já na porta, ele bateu com toda força na parte de trás da abeça dela. A mulher tombou para fora e caiu no asfalto. Ninguém levantou para socorrê-la. O cara a levantou com violência e a arrastou, afastando-a de nossa vista. Em seguida, ouvimos outro grito. Esbocei querer levantar. A dona do salão, como se soubesse as razões por trás daquilo, pediu para todos ficarem onde estavam.

"Isso é coisa deles". - Ela disse.

A minha mulher levantou pouco depois. Estava com os cabelos bem arrumados e a unhas pintadas de vermelho.  Mais umas duas ficaram prontas ao mesmo tempo que ela. Saí, meio sem jeito por não ter defendido a outra mulher. Quando entramos no carro, estava muito quente e ligamos o ar-condicionado na máxima potência. O sol batia forte e a rua estava vazia. Acelerei. Ela pediu para almoçarmos num restaurante, antes de irmos pra casa. Pedimos bife com arroz e salada. Enquanto aguardávamos, comentamos sobre o sujeito que havia espancado a mulher no salão. "Não é a primeira vez." - Ela disse - "Mas não a conheço bem, embora ela frequente o salão. Mas a manicure comentou comigo que já houve outras vezes, várias vezes. Não lá no salão. Essa foi a primeira vez. Nem parece que ele a trata assim. Ele já a buscou outras vezes, e ele parecia tão amoroso das outras vezes..."

X   X   X

Mais tarde, já noite, fomos para a igreja e participamos da missa. Após a cerimônia, todos em festa em torno do coreto na praça, vimos o casal da briga no salão. Estavam de mãos dadas. Os cabelos dela encobriam um lado do rosto. De longe, eles nos viram, desviaram e tomaram outro rumo. Mas não paravam para conversar com ninguém, apenas andando e de mãos dadas. Num certo ponto, ele passou o braço em torno da cintura dela. E depois sumiram da nossa vista.

Paramos num barraca com uma decoração bem espalhafatosa com bandeirolas e cores vivas variadas, na qual estavam a servir sorvete, bebidas alcoólicas, refrigerantes, salgados, doces.

"Peça para colocar raspas de côco na minha pipoca" - A minha esposa pediu. Parecia muito satisfeita por estar ali.

"Eu vou querer uma coca-cola também, meu bem." - Ela complementou, sorrindo como uma criança: "Que noite linda, meu amor. Eu estou muito feliz. Muito feliz!".

Marco Antonio, 2014.

Nenhum comentário: