7.7.14

COMO SÃO BELAS AS NUVENS



Chegaram antes das dez da manhã daquele sábado de pouco sol. Eu e meu amigo sentamos em banquinhos de cimento debaixo da mangueira, e elas foram direto para a cozinha. Esse casal amigo já havia nos visitado muitas outras vezes e todos estavam bem à vontade. Após aquela conversa inicial sobre o trânsito e a semana de trabalho, fui até a geladeira e voltei com uma cerveja e dois copos. Não tardou e esse meu amigo começou a falar sobre uma antiga namorada. Nunca havia falado sobre ela na minha presença. Disse que era coisa de muito antes de conhecer a mulher dele. Quando a cerveja acabou, ele mesmo foi pegar outra e voltou com umas azeitonas. E continuou a falar sobre a tal moça do passado dele. Então eu perguntei sobre o porque de estar lembrando dela naquele momento.

- Afinal, meu amigo, ela continua desimpedida? - perguntei, lá pelo meio da conversa.
- Não, claro que não! É casada e tem filhos. Tem um ótimo casamento... - ele respondeu.
- Sim, e por que logo agora ela veio parar aqui nessa conversa?

A mulher dele veio vindo. Trazia outra cerveja e uns bolinhos de bacalhau. Colocou tudo sobre a mezinha de cimento sob a mangueira e levantou o olhar para o céu. De repente, após ajeitar os pratos e virar-se, ficou parada e olhando pra cima. Não demos atenção e começamos a mexer nos bolinhos, quando ela falou:

- Meu Deus, como as nuvens estão! Nuvens lindas, meu Deus! Vocês estão vendo? Vocês estão vendo?! Olhem! São nuvens coloridas, cortadas por imensos arco-íris, eles descem em círculos de lá de cima.

Havia nuvens no céu, talvez em maior quantidade, além o normal, a  encobrirem o sol. Mas não eram coloridas de forma alguma. Contudo, ela não parava de dizer aquelas coisas sobre arco-íris circulares descendo e girando. O meu amigo a segurou e a fez olhar para baixo. Pediu que fechasse os olhos por um tempo para depois voltar a olhar as nuvens. Antes de puder voltar a mirar o céu, ela queixou-se de náuseas e fomos obrigados a levá-la para dentro de casa. Minha mulher, quando a viu naquele estado, o rosto pálido, ficou assustada. "Há poucos minutos... não pode ser... ela estava ótima e alegre", a minha mulher repetia, "ela estava bem", "ela estava bem".

Na segunda-feira, soubemos do resultado. O meu amigo ligou e disse tratar-se de um tumor no cérebro, coisa não tão fácil, embora não fosse também impossível de cura, pois o tumor estava ali fazia pouco tempo, embora crescendo, sem nenhum sintoma de mal-estar anterior ao acontecido em nossa casa. Perguntei como ela estava. "Um pouco sonolenta", foi a reposta dele, "Ela continua falando das nuvens lindas, de serem de verdade, e continua a falar dos arco-íris circulares descendo do céu, e diz como se tivesse visto mesmo tudo aquilo. Não fosse pelo tumor, daria até para acreditar, do jeito que ela fala pra mim."

x  x  x

Um ano e meio depois, mais ou menos, eles voltaram a nos visitar. Sentamos mais uma vez nos banquinhos de cimento sob a mangueira. E elas, a mulher de meu amigo e minha mulher, trouxeram cervejas regularmente, e uns camarões saborosos. Quando se afastaram para fazer mais uns pratos, meu amigo voltou a falar da antiga namorada. Ele já estava claramente embriagado, e sua voz era pastosa. Mesmo assim, perdi a paciência e perguntei se não estava feliz por ter a mulher de volta após um longo e doloroso tratamento. Então ele olhou para o céu retalhado por nuvens e o fixou longamente. O céu era de um azul profundo, azul que antecede o entardecer, um azul rasgado por imensas nuvens compridas refletindo a luz do sol já baixo e mais frio. E ele permaneceu com o olhar fixo para cima, acima das folhas a balançarem ao vento. Foi quando as mulheres estavam voltando, cada uma com um pratinho numa das mãos. De súbito, ficaram paralisadas no meio do caminho ao verem o meu amigo  no que parecia um estado de contemplação, olhos vidrados, a boca semi-aberta, meio caído para trás, as costas apoiadas na mesa de cimento. A mulher dele, ainda inerte, deixou os pratos caírem, e os bolinhos rolaram ao longo da inclinação do terreno. Foi quando ele caiu de lado, e o impacto foi acompanhado de um som abafado de carne batendo no chão."Levanta ele! Levanta!" - A minha mulher gritou.

Estava desmaiado e  pesado, muito pesado. Precisou de nós três para colocá-lo novamente de pé. Quando o sentamos novamente na cadeira, a esposa veio de lá com uma panela e jogou água fria na cara do meu amigo.  Aquilo o fez estremecer e, em seguida, puxar o ar com força, fazendo o peito gordo ir e voltar umas três vezes.

já estava escuro e frio. Entraram no carro, ela sentou-se ao volante e tentou desculpar-se, mas parecia confusa e exausta. Ele inclinou o recosto do banco do carona para trás e deixou-se cair, o corpo esparramado, braços cruzados sobre o peito. Afastei-me, enquanto ela falava alguma coisa para a minha mulher, elas se davam bem, de verdade, eu sabia disso; e, por isso, afastei-me, para poderem conversar melhor. Logo depois, o farol do carro iluminou a estrada de terra e saiu vagarosamente. Da minha casa, disposta no lugar mais alto do terreno, acompanhei o brilho das lanternas traseiras do carro deles até perderem-se de vista.

Nunca mais voltaram e nem os convidamos mais. Nem mesmo sabemos onde agora moram.

Marco Antonio, 2014.

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