Quando
chove muito e o sol demora a sair; as nuvens pesadas a encobrir o céu já sem chuva, notamos os cães abrirem a latir sem parar, tanto os próximos quanto os das casas mais distantes. E varam a noite
desse jeito, como se houvesse a presença de uma ameaça pairando no ar acima ou abaixo das nuvens, ou sob a terra, nas raízes das árvores, ou além deste mundo. O que eles
sabem ou pressentem, é ainda assunto para discussões - uns dizem que cães são sensíveis a terremotos, tragédias as mais diversas cujos avisos prévios não chegam aos ouvidos humanos. Que é dado aos cachorros, mesmo aos vira-latas, saberem de coisas além daquilo que é dado aos humanos conhecerem por natureza ou ciência.
Numa
dada noite, choveu muito. E o dia amanheceu de um jeito diferente, os cães da vizinhança latindo sem parar, o dia
inteiro, quase entrando pela noite. Lá pelo final da tarde,
encontraram, nas pedras à beira do rio, uma mocinha
assassinada, nua, estuprada. Por óbvio, começaram a dizer que, por isso, os cães estavam tão nervosos - vejam, eles sabiam daquilo! -, e
só se aquietaram quando o corpo
foi encontrado.
No dia seguinte, quando um criador de cavalos dirigia-se calmamente à barbearia, os cães avançaram sobre ele e o atacaram ferozmente, e se fizeram acompanhar do latido de todos os outros do lugar. Foi o suficiente.
No dia seguinte, quando um criador de cavalos dirigia-se calmamente à barbearia, os cães avançaram sobre ele e o atacaram ferozmente, e se fizeram acompanhar do latido de todos os outros do lugar. Foi o suficiente.
Durante a
investigação, ficou claro que o criador
de cavalos não tinha álibi algum capaz de inocentá-lo
da acusação de estupro e assassinato de
uma garota de 13 anos. Vieram policiais da capital e o caso tomou forma. Foi
ele. Acabou confessando.
Daquele
dia em diante, todos passaram a temer os cães. Imagine: qualquer deslize,
um leve adultério, um passar de perna no sócio, ou simplesmente um pensamento maldoso qualquer. Por
via das dúvidas, melhor não ter cães. E, num intervalo de pouco
mais de uma mês, não havia um único cão no lugar. Quem não teve coragem de dar fim ao
seu próprio animal, fora ajudado ou
coagido pelo vizinho. Quando aparecia um cão perdido, um pobre cão vagabundo e sem dono, não
faltava quem se dispusesse a empunhar
uma espingarda.
x x x
Dois anos
após aquele incidente, outro
tornou a acontecer. Uma mulher fora encontrada morta à beira do rio, nua e estuprada. E depois outra. Três ao todo, uma por semana. E aquela onda de assassinatos veio sem aviso prévio
qualquer, sem o latido dos cães - não havia cães -, sem pistas, apenas o
falatório caótico do povaréu de sobre quem poderia ser, pois o criador de cavalos
estava bem preso numa penitenciária estadual. Vieram mais uma
vez os policiais da capital, e depois de um tempo eles voltaram, sem nada a entregar aos
moradores da localidade. Não demorou muito, talvez umas
cinco semanas da última mulher jovem assassinada, uma
velha solitária foi encontrada com o coração fora do peito. Na melhor das hipóteses, havia um assassino sádico
à solta, e pior, sem nenhum cão no seu encalço.
Um grupo
de moradores apressados tomou a iniciativa e começou a encher a cidade de cães, criaram uma associação
para receber donativos e alimentá-los. Criou-se uma comissão para administrar as aquisições
e transferências para as residências. Qualquer um que não
desejasse ter um cão em em casa era encarado como
um cidadão suspeito. Fizeram uma lista.
Mesmo aqueles que jamais tiveram qualquer afeição
por cachorros ou habilidade no trato com eles eram forçados a ter um, talvez dois. As autoridades deixaram
acontecer. E a cidade foi novamente se enchendo de cães, das mais diversas raças
e tamanhos. O cão era o documento de boa
vontade, de cidadania e de presunção de inocência. Desenvolveu-se se o
argumento quase teológico de que um bom cachorro de
latido forte em casa substituía a obrigação de ir ao culto aos domingos. Em três anos e meio, a cidade tinha
quatro vezes mais cachorros do que gente. E, por coincidência ou não, por elo de causa e consequência ou não, os crimes simplesmente não mais aconteceram, só mortes naturais.
E, quando
chove, e as nuvens encobrem o céu por horas, nuvens de chumbo
escondendo o sol, os cães a ladrarem quase em uníssono, os moradores só se dão por satisfeitos
quando a ronda varre os arredores, as margens do rio, as fazendas e os sítios, os galpões de fábrica, os lugares abandonados, o cemitério, e todas as residências, até voltar sem notícia de vítimas. Quando o sol brilha no alto, os cães se aquietam e dormem. E
a vida volta a transcorrer em sua normalidade.
Marco Antonio, 2013.
Um comentário:
Absolutamente FANTASTICO! :o)
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