7.11.13

NÃO VÁ LÁ.



 
O que há naquele lugar? Só os cães vagabundos da rua se aproximam, e depois voltam assustados, numa correria sem rumo. Um deles deu direto com a cabeça num poste e levantou com as pernas moles. Casas abandonadas, gente estranha, um lugarejo fantasma ou habitado por quem sabe lá o quê?

O que há naquele lugar?

A vista não alcança. Tem o cercado, depois um matagal espesso, um emaranhado de mato grosso e logo seguido de um rochedo elevado que impede a visão mais ao longe. As crianças são, desde cedo, ensinadas a nunca se aproximarem do cercado. Os pais mais severos e cuidadosos obrigam-nas a nem mesmo olhar para aqueles lados de nossa pequena cidade. Mas sabe como são as crianças.... Elas olham, esticam a visão ao máximo, e ficam a imaginar coisas. E, nas noites,  os sonhos as alcançam inertes. Mas não somente as crianças. Todos são acometidos, embora ninguém comente por aí. Tabu, motivo de vergonha até.

Quando um de nós sai de casa pela manhã com aquele semblante envergado, os olhos pra baixo, passos lentos e indecisos, de pouca conversa, evitando os demais - é sinal de que, em sonho, passou pelo cercado , ou por lá a sua alma vagou, perdida. Em respeito, ninguém aborda ou pergunta, deixam o desafortunado passar o dia tentando, sozinho e tentando esquecer.

Em alguns casos, o pesadelo acomete os dois do casal, e ambos acordam um evitando o outro. Um sai pela porta da frente; o outro, pelos fundos. E passam até mais de um dia sem voltar pra casa. Quando um casal sai de casa, ainda bem cedo, o olhar perdido, parecendo duas almas estropiadas, os vizinhos tratam logo de cuidar dos filhos deles. E dão comida, banho, levam pra escola, até que tudo passe.

Hoje, bem cedo, quem saiu de casa, e  de um jeito atabalhoado, sem nem trocar de roupa, ainda vestida como se fosse ir dormir, foi a mulher do pastor. Aproximaram-se dela apenas para jogarem-lhe no corpo um cobertor, e a pobre andou perdida pelo estrada de terra o dia inteiro, e só voltou no meio da noite. Logo ela, a mulher do pastor! Não teve culto. O marido ficou em casa a cuidar da família, com certeza  preparando comida e cuidando dos cinco filhos pequenos.

Na semana passada, foi o dono da mercearia. Antes dele, a mãe de um aleijado que pede esmola na porta da Igreja. Há dois meses, e todos lembram bem desse caso, o padre saiu da casa paroquial sem a usual batina, de ceroulas, os cabelos finos de velho desgrenhados, sem camisa. Decalço.

Por sorte, nunca tive esses sonhos, apenas imagino como podem sê-los. A minha mulher diz a mesma coisa, embora eu saiba não ser verdade. Certa vez, acordei bem cedo naquele dia, e ela não estava mais na cama. Encontrei-a do lado de fora - e era uma manhã bem fria, o sereno encobrindo a vegetação  -, ela estava sentada num banquinho, encurvada debaixo de uma árvore no quintal. Chorava feito uma criança. Quando percebi aquilo, me afastei. Mas ela reagiu, e disse que estava apenas com saudade da mãe que havia morrido um ano antes. Eu fingi acreditar. Mas passou o dia com o olhar perdido, sem querer falar, ou então emitia uns lamentos que eu não entendia direito a razão e a causa, e sem disposição para fazer nada, nem trocou de roupa. Mas passou, foi passando aos poucos. 

Mesmo assim, já depois de um bom tempo, quando eu a observo, ela está com o pensamento absorto. Então é assim que eu sei que esteve lá.

Marco Antonio, 2013.

Um comentário:

ncamargo disse...

… aquela coisa que toca e vc nem sabe o porque mas lá no fundo, voce bem sabe o porquê…
belo texto!