12.1.17

GRAÇA

Chovia. O sinal fechou. Na faixa de pedestres, ela deu o passo para atravessar, e se  foi, com aquele seu jeito bem bacana e sensual de caminhar, somente ela na faixa, balançando levemente os quadris, enquanto olhava fixamente para o namorado que a esperava do outro lado da rua. Ela não viu que vinha de lá um carro veloz  no asfalto molhado e liso, e só ouviu o som agudo do atrito. Não deu tempo de parar, o veículo foi diretamente em suas pernas e a jogou para cima e para o lado. O carro parou lá adiante. Ela ficou caída no chão molhado, desacordada, o sangue no rosto e escorrendo.

O motorista abriu a porta do carro e não teve coragem de ir vê-la. O namorado gritou e correu para socorrê-la, e outras muitas pessoas apareceram imediatamente depois, um monte de gente, pessoas saídas dos mais diversos lugares parecendo surgir do nada. Em seguida, a polícia e a ambulância.

Um policial perguntou pelo motorista, apontaram para um homem jovem recostado no carro verde no meio da pista e de cabeça baixa. Dois fardados o abordaram, um deles começou a fazer anotações, mas o motorista nem se mexeu, respondia às perguntas em voz baixa, sem nem mesmo levantar um braço. A chuva continuava caindo e ele estava todo encharcado. A ambulância logo saiu em disparada. A multidão foi dispersando aos poucos, ao tempo que a polícia tirava fotografias do local e do veículo, o qual também foi retirado para liberação do trânsito. No início, como é comum nesses casos, o trânsito rodou lentamente, os motoristas tentando entender a causa do congestionamento, olhares curiosos. Depois, fluiu no ritmo normal. E a chuva foi diminuindo, até que passou de todo. No dia seguinte, saiu no jornal que a moça havia sofrido um traumatismo craniano e acabou não resistindo.

O inverno se foi. Veio o processo contra o motorista, depois o verão. A cidade esquentou muito naquele verão. Mas depois, um outro inverno, e o tempo foi passando. O motorista pagou com uns trabalhos sociais numa creche na periferia. Sem antecedentes, tinha emprego certo, era trabalhador, filho único adorado pela mãe. Não bebia muito, tinha muitos amigos e bastante camaradas das partidas de futebol das quintas à noite.  Na creche, conheceu e passou a namorar uma moça bem bonita. Sandra.

Três anos depois, casaram. Tiveram um filho e, após um ano, uma filha. E a vida foi seguindo. Ele saiu do emprego e botou um negócio próprio e, tão logo a coisa se equilibrou, construíram uma casa bonita. Mais adiante, compraram uma pequena casa de praia, para aonde iam quase todos os finais de semana com as crianças.

Ela era alta, sob um rosto largo e bonito; pele morena, costumava criar os cabelos negros à altura do ombros. E tinha um jeito afável de lidar. Ele a amava e pensava nela como uma bênção.

Prosperaram muito e continuamente. Chegaram àquele padrão que se confunde com a riqueza, enquanto as crianças cresciam saudáveis e estudavam em boas escolas. Até que ficaram adultas e chegaram à idade de também construírem suas famílias. Depois vieram os netos.

Formavam um casal admirado no seu meio, um exemplo para os demais, sempre convidados para aniversários, batizados, casamentos e festas. Tudo em suas vidas dava-se numa sequência de bons ventos, sem contratempos, numa escalada contínua de passos certeiros, decisões felizes, consequências no espectro do previsível e do esperado. Em nenhum momento a sorte os abandonou, nada veio de ruim de verdade,  nem mesmo aqueles soluços do acaso e que podem recair sobre qualquer vivente, a exemplo de tragédias pessoais ou familiares. Nenhum infortúnio os afligiu. Tudo fluiu em suas vidas como se num barco seguro em mar tranquilo à mercê da brisa soprada pelo bom Deus. Nada de Sua Ira chegou a afetá-los material ou espiritualmente. Até mesmo a morte da mãe dele, já muito velhinha e frágil, não fugiu ao plano de normalidade de como as coisas devem ser - a morte para os velhos -, tudo no seu devido tempo e na sua hora certa.

Temia apenas perdê-la.

Até que veio o dia. Para ele. Chegou sem dor, sem desconforto ou angústia, sem aviso algum, nem mesmo uma ponta daquela agonia do momento em que nos separamos definitivamente do que somos e a alma nos é arrancada.

Marco Antônio, janeiro de 2017

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