2.6.14

APÓS A FESTA



"Você nunca está só"  - Hubmann.

Pediu uma bebida e recostou-se em um balcão recuado. Minutos depois, ela chegou, ela e mais três amigas. Chamou-lhe a atenção o azul do vestido e o verde dos olhos. Das quatro moças, somente ela sorria; e, mesmo com o som alto da música que tocava bem ritmada, dava para ouvir a risada aberta e ampla. Passado um quarto de hora, ela não parecia tê-lo notado de modo algum, mesmo quando seus olhos abarcavam o balcão onde ele se debruçara.

Depois foram só pensamentos.

Começou quando ele, ao entrar numa livraria, pegou um livro e mirou a capa, o título e o nome do autor. Em seguida, abriu-o numa página interna e, ainda no primeiro parágrafo, imaginou o que ela pensaria sobre o que estava escrito ali na folha aberta. Após o que, comprou o volume e o leu lentamente, intercalando frases e pensamentos, um processo vagaroso e constante de breves leituras e longas paradas. Não aquele pensamento reflexivo sobre o que se lê, ou a refutação da ideia exposta ou ainda a busca de alguma correlação com a realidade e com outras obras lidas. Um diálogo, não com o autor, mas com um segundo leitor imaginário a ler em paralelo as mesmas palavras, seguindo a mesma marcação das vírgulas e o ritmo das frases, uma após a outra, páginas após páginas, até o final. No fim de tudo, a certeza de que ambos haviam lido e comentado aquele livro singular.  Mas não parando por aí. Também muitos outros, por meses, uma variedade de autores, músicas, compositores, obras de arte, experiências as mais diversas, desde as meramente intuitivas e espirituais, indo até os desdobramentos de natureza religiosa, passando pelas percepções visuais, paisagens de um cabedal de viagens, além do outro extremo mais humano das amizades, relações pessoais e amorosas, sentimentos, sonhos, mentiras, frustrações e insucessos, alegrias e os pequenos momentos doces de vida.

Com os anos, não foi sobrando sequer um pequeno espaço onde houvesse somente ele e sua alma única neste mundo. Nada daquele isolamento próprio que recai sobre cada um de nós desde o nascimento. Nem resquícios da solidão particular à todo ser humano jogado no seio da Criação. Ao seu lado, sempre presente aquela mulher de vestido azul, olhos verdes e sorriso largo. Sempre acompanhado, antes mesmo do raiar do dia, desde o sono mais profundo e confuso das noites pesadas, desde a manhã do dia anterior, desde muitos dias anteriores. Estava à beira de, por nunca estar a sós consigo, isolar-se de tudo o mais.

Até o dia em que a viu novamente e de verdade. Foi quando virou o rosto na rua movimentada. O sinal lá adiante fechou -  e lá estava ela atravessando sozinha a larga avenida na faixa de pedestres, somente ela. Como naqueles filmes em que se pretende marcar e alongar uma breve cena,  aquele momento transcorreu em câmera lenta -  pesado em seu ritmo, longo e denso em sua duração. O vento forte batia no vestido solto, não aquele azul da festa, mas um de várias cores alegres e misturadas em desenhos geométricos. Soprava em curtas rajadas nos cabelos negros pesados à altura dos ombros. Por detrás da cena, os carros todos parados, um ao lado do outro, os faróis acesos à meia-luz, os motores em baixa rotação fazendo aquele zumbido grave e constante, e os motoristas paralisados ao volante na longa espera, enquanto ela passava, tendo para isso todo tempo que restasse. Já perto do outro lado, virou o rosto para ele, e o mirou por um instante breve e limitado, mostrando que o  reconhecia, desejando que a visse. E, pela primeira vez, ele pode olhar para o belo sorriso a ele dirigido, agora a sua sua alma liberta.

Marco Antonio, 2014.

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