10.11.13

BÊNÇÃO




Chovia. O sinal fechou. Na faixa de pedestres, ela deu o passo para atravessar, e se  foi, com aquele seu jeito bem bacana e sensual de caminhar, somente ela na faixa, balançando levemente os quadris, enquanto olhava fixamente para o namorado que a esperava do outro lado da rua. Ela não viu que vinha de lá um carro veloz  no asfalto molhado e liso, e só ouviu o som agudo do atrito dos freios. Não deu tempo de parar, o veículo foi diretamente em suas pernas e a jogou para cima e para o lado. O carro parou lá adiante. Ela ficou caída no chão molhado, desacordada, o sangue no rosto e escorrendo no chão molhado.

O motorista abriu a porta do carro e não teve coragem de ir vê-la. O namorado gritou e correu para socorrê-la, e outras muitas pessoas apareceram imediatamente depois, um monte de gente, pessoas saídas dos mais diversos lugares, parecendo surgir do nada. Em seguida, a polícia e a ambulância. Um policial perguntou pelo motorista, e apontaram para um homem jovem recostado no carro verde no meio da pista e de cabeça baixa. Dois fardados o abordaram, e um deles começou a fazer anotações, mas o motorista nem se mexeu, respondia às perguntas com a voz baixa, sem nem mesmo levantar um braço. A chuva continuava caindo e ele estava todo encharcado. A ambulância logo saiu em disparada, carregando a vítima. A multidão foi dispersando aos poucos, ao tempo que a polícia tirava fotografias do local e do veículo, o qual também foi retirado para liberação do trânsito. No início, como é comum nesses casos, o trânsito rodou lentamente, os motoristas tentando entender a causa do congestionamento, olhares curiosos. Depois, fluiu no ritmo normal. E a chuva foi diminuindo, até que passou de todo. No dia seguinte, saiu no jornal que a moça havia sofrido um traumatismo craniano e acabou não resistindo.

O inverno passou. Veio o processo contra o motorista, depois o verão. A cidade esquentou muito aquele verão. Mas depois, um outro inverno, e o tempo foi passando. O motorista pagou com uns trabalhos sociais numa creche na periferia, e foi liberado. Sem antecedentes, tinha emprego certo, era trabalhador, competente, filho único adorado pela mãe, e frequentava o templo aos domingos; não bebia, não fumava, tinha muitos amigos e bastante camaradas das partidas de futebol das quintas à noite. Jogava no gol, e pegava bem.  Na creche, conheceu e passou a namorar uma moça bem bonita. Sandra.

Três anos depois, eles casaram. Tiveram um filho e, após um ano, uma filha. E a vida foi seguindo sem paradas. Ele saiu do emprego e botou um negócio próprio e, tão logo a coisa se equilibrou, construíram uma casa bonita, compraram uma pequena casa de praia, para onde iam quase todos os finais de semana com as crianças. Ela era alta, sob um rosto largo e bonito, pele morena, costumava criar os cabelos negros à altura do ombros, e suas pernas eram longas e bem feitas; os seios, pequenos; e um jeito afável de lidar. Ele a amava, e pensava nela como uma bênção de Deus.

Prosperaram muito e continuamente. Chegaram àquele padrão de vida que se confunde com a riqueza, enquanto as crianças cresciam saudáveis e estudavam em boas escolas. Até que ficaram adultas e chegaram à idade de também construírem suas famílias. Depois vieram os netos.

Formavam um casal admirado no seu meio, um exemplo para os demais, sempre convidados para aniversários, batizados, casamentos e festas. Tudo em suas vidas dava-se numa sequência de bons ventos, sem contratempos, numa escalada contínua de passos certeiros, decisões felizes, consequências no espectro do previsível e do esperado. Em nenhum momento a sorte os abandonou, nada veio de ruim de verdade,  nem mesmo aqueles soluços do acaso e que podem recair sobre qualquer vivente, a exemplo de pequenas ou grandes tragédias pessoais ou familiares,  doenças mais ou menos preocupantes. Nenhum infortúnio ou arrependimento os afligia. Tudo fluiu em suas vidas como se num barco seguro em mar tranquilo, à mercê da brisa soprada pelo Deus sempre bom. Nada de Sua Ira chegou a afetá-los material ou espiritualmente. Até mesmo a morte da mãe dele, já muito velhinha e frágil, não fugiu ao plano de total normalidade, de como as coisas devem ser - a morte para os velhos -, tudo no seu devido tempo e na sua hora certa.

Na velhice, ele veio a temer ficar só. Que sua amada esposa fosse antes dele. Imaginava a morte dela como um fardo demasiadamente pesado a ser suportado.  Em todas as noites, orava para que primeiro fosse ele a ser levado. Fazia disso o seu único e modesto pedido ao Senhor.

Até que veio o dia, felizmente, o dele, como uma dádiva a mais, dentre tantas que jorraram generosamente em seus anos de vida juntos. Já estava bem idoso, embora forte, sem estar sofrendo de nenhuma doença, tanto que ainda trabalhava na empresa, bem tocada agora pelos filhos. Chegou sem dor, sem desconforto ou angústia, sem aviso algum, nem mesmo uma ponta daquela agonia do momento em que nos separamos definitivamente e somos arrancados de nós mesmos.

Marco Antonio, 2013.

Um comentário:

ncamargo disse...

A vida como ela é… e as vezes é… "bênção".
Feliz deste jovem que conseguiu ser um homem feliz.